Ilustra Curitiba.2 Dalton KarinaFreitas fev.20

 

Que fim levou o vampiro de Curitiba? A pergunta não é minha, mas do próprio vampiro, o escritor curitibano Dalton Trevisan, 98 anos em 2023, num conto que leva como título o mesmo questionamento. Um texto em que ele passa em revista o provável (e invariavelmente infeliz) destino do bestiário de tipos a povoar sua produção, uma das mais importantes em língua portuguesa, desde meados do século passado. Como um nostálgico mestre de cerimônia circense, ele se indaga que fim levaram a garçonete banguela do Café Avenida, as bailarinas da Caverna Curitibana, o João Banana, o Homem da Capa Preta, o Rei da boate Marrocos, aquelas inesquecíveis misses Curitiba e suas “coxas fosforescentes”, um certo lírico necrófilo e tantos, tantos outros… para ao final da contabilidade lamentar que eles estariam hoje sob as ruínas de uma cidade já há muito perdida.

A contabilidade feita pelo narrador-Trevisan de Que fim levou o vampiro de Curitiba? nos dá uma visão panorâmica dos personagens à margem que acabam formando o centro inescapável da capital paranaense. Uma cidade que saltou de modelo de progresso (cantado até numa canção de Rita Lee, que ironiza o desejo de ser “normal em Curitiba” na era Lerner) para se tornar o coração mumificado da nossa recente crise política. Em nenhum desses estágios, o autor continua a nos advertir, a cidade perdeu as figuras fantasmagóricas do que ele entende (ou do que achamos que ele entenda) por sua essência, que não deixa de ser também a essência da urbanização selvagem e desigual do Brasil ao longo do século XX. A sua Curitiba está em todo lugar e está onde menos se espera, para brincarmos com algumas das definições que Guimarães Rosa dá para o Sertão. “O próprio Trevisan é um escritor que se repete e refunda, livro após livro, ao emular e ironizar o comportamento e o gosto da província onde nasceu e onde vive e escreve há quase cem anos. E a forma com que recicla e lapida (ou dilapida) seus contos, com que demole e reergue sua obra, diz muito a respeito desse século. Isso em termos não só estéticos, mas também políticos e, para mim, até econômicos”, já apontou um dos seus conterrâneos, o escritor Luís Henrique Pellanda.

Se o clichê do jornalismo cultural gosta de repetir a alcunha de vampiro para tratar de Trevisan, pegando carona no título de um dos seus contos mais famosos, O vampiro de Curitiba, isso não ocorre sem certa dose de razão. Clichês, por mais redutores que sejam, por mais que oprimam, guardam um mínimo de reflexo (e aqui temos um vampiro que não teme sua imagem no espelho) da “coisa original”, ainda que pelo avesso. A literatura e o cinema vivem a nos informar tudo aquilo que atrai e repele esses monstros, os tais “filhos da noite”. E sabemos também, a cada (re)leitura dos contos de Trevisan, o que ele vai escolher para esmiuçar e atacar. Sabemos quem são as suas vítimas, sabemos as suas formas de ataque, mas o que nos faz voltar para os seus textos é justamente a sofisticação e o inusitado detalhe microscópico, que aparece a cada nova repetição.

Convidamos, repetidamente, Trevisan a entrar, com o receio de termos perdido algo na vez anterior. O que é bem provável. A dúvida faz o leitor. E a vítima.

Ano passado, ele organizou, em edição de autor, a oitava antologia dos seus contos desde 1979. O mesmo volume é relançado agora com o título de Antologia pessoal, pela Editora Record, acrescido de um prefácio de Augusto Massi. “Como toda antologia implica em balanços, recortes temáticos, escolhas e recusas, as antologias correspondem a uma série de autorretratos: Dalton Trevisan por Dalton Trevisan”, afirma Massi, para em seguida nos situar do trabalho certeiro que temos em mão: “O vampiro é extremamente rigoroso. Quando não gosta: corta, risca, sangra”

Num universo de 700 contos conhecidos, em Antologia pessoal foram agrupados 94, alguns deles em novas versões. Seus textos costumam ser alvo de constantes reescrituras, fazendo valer assim a máxima proferida num depoimento (ou microconto) enviado aos organizadores do Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) em 2007: “Uma história nunca termina. Ela continua depois de você”. Como em toda reunião como essa, as ausências chamam atenção. É o caso dos contos Mister Curitiba, com seu devaneio erótico, e Penélope, em que Trevisan narra a tragédia de um casal de idosos forasteiros numa cidade que, paradoxalmente, eles parecem ter vivido desde sempre. Mas reclamar de ausências é preciosismo do resenhista. Sobretudo em se tratando de alguém tão consciente de sua própria obra, tão consciente que termina a Antologia pessoal discorrendo sobre um velório, vejam só!, um velório que, tragicamente, sempre tragicamente, ocorre com um certo infortúnio, descrito na fulminante última linha: “A loja de flores era longe”.

Num artigo sobre Trevisan, o crítico Silviano Santiago destacou: “Um dado é seguro. Dalton não é pop.” Ele é o nosso escritor que optou pela discrição absoluta, de forma ainda mais radical que João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. A observação de Santiago é na mosca, já que Trevisan conseguiu escapar das inúmeras armadilhas lançadas pela mídia ao longo dos anos para capturá-lo. Da alcunha vampiresca aos fotógrafos e leitores atrevidos (para usarmos um eufemismo), todos tentam sempre lançá-lo no espetáculo midiático, que gruda naquilo que hoje entendemos por universo literário. No entanto, se você conversar com qualquer curitibano, vai entender que Trevisan não necessariamente se esconde. Teria sido ele que acabou de passar logo ali, apressado com sacolas de compras? Nunca saberemos. É que, como num truque de mágica, só conseguimos enxergar as sombras da obra que ele criou, assim como só podemos inventar um vampiro que se deixa existir. Mas essas sombras estão em todo lugar; por lá e bem aqui, ao nosso lado. O homem, esse, sumiu.