Em 1963, alguns anos antes de consagrar-se como o filósofo que “revoluciona a história” — para lembrarmos o célebre epíteto de Paul Veyne (1930-2022) —, Michel Foucault (1926-1984) publica O nascimento da clínica, analisando, por meio de uma arqueologia do olhar médico, a configuração que transformou a medicina em saber científico, na passagem do século XVIII para o XIX. Ao examinar o lugar paradigmático ocupado pela medicina moderna na arquitetura das ciências do homem, assim como na instauração de um tipo de poder característico das sociedades capitalistas, Foucault nos lembra que o aparecimento da clínica enquanto fato histórico deve ser identificado com uma profunda reorganização não só dos conhecimentos médicos, mas da maneira como a sociedade enxerga a doença e os corpos.
É impossível não rememorar suas páginas ao avançar na leitura de Ao amigo que não me salvou a vida, de Hervé Guibert (1955-1991), publicado na França em 1990 e prontamente convertido num estrondoso sucesso editorial. Relançado agora pela Todavia, com tradução de Julia da Rosa Simões (a edição anterior, da José Olympio, é de 1995), o livro foi responsável por apresentar Guibert ao grande público, consagrando-o como escritor de uma das primeiras e mais audaciosas abordagens literárias da aids.
Jornalista, crítico, roteirista e fotógrafo, autor de ensaios, contos e romances notáveis, Guibert publicou Ao amigo que não me salvou a vida um ano antes de sua morte, aos 36. Escrito como um protocolo de investigação das manifestações do HIV em seu corpo, o livro não é um testamento intelectual ou uma biografia, mas uma ficção autopolítica que explora os interstícios entre a vida e a morte.
Três meses após o diagnóstico de sua condenação pela “doença inexorável”, Guibert é surpreendido pela expectativa de salvação, oferecida pela promessa de um medicamento anunciado pelo diretor de um grande laboratório farmacêutico, o amigo presente em seu título. A obra, de certa maneira, é uma história da aids e dos anos 1980. Do pavor e da desorientação que guiam os primeiros anos da epidemia. Mas, acima de tudo, é uma poderosa tecnologia de intervenção na subjetividade daquele que a escreve. Escrever é uma forma de se manter vivo; de enunciar o indizível; de lutar contra a fadiga criada pela luta do corpo contra os ataques do vírus; de exorcizar a impotência; de viver com a morte.
Dividido em cem capítulos curtos, o texto é apresentado de maneira fragmentada e quase fotográfica, à semelhança de como se constrói e desconstrói a subjetividade, numa referência declarada à obra de Thomas Bernhard (1931-1989), escritor que atua como um fantasma ao longo da narrativa, uma metástase que se propaga a toda velocidade no corpo e nas reflexões vitais do autor.
Guibert foi vizinho e amigo íntimo de Foucault, retratado no livro como Muzil. O jovem e prodigioso escritor ingressou no círculo de amigos do filósofo ao publicar seu primeiro romance, La mort propagande, em 1977. Pelas letras de Guibert somos apresentados a um Muzil que sucumbe, sequestrado pelos mecanismos de controle hospitalar que o filósofo analisara com brilhantismo inigualável. Guiado pelas anotações de seu diário, o escritor narrará em detalhes os dias que antecedem a morte de seu amigo, em junho de 1984, no hospital parisiense Pitié-Salpêtrière, revelando ao mundo o motivo de sua desgraça.
Certo dia, após visitar Muzil no hospital, Guibert sentiu-se envergonhado por transcrever fatos embaraçosos em seu diário. Ao questionar-se sobre sua legitimidade, foi tomado por uma espécie de vertigem que lhe dava poderes totais, uma premonição de que estaria plenamente habilitado, uma vez que não era a agonia do amigo que ele descrevia, mas a sua própria: “havia uma certeza de que além da amizade estávamos ligados por um destino tanatológico comum”.
Debates em torno da exposição da intimidade alheia acompanharam a trajetória crítica do livro. O escritor, no entanto, insistia que sua obra era um romance. Que não tratava das particularidades de suas relações pessoais, mas das encruzilhadas de destinos interrompidos pela aids. Seus amigos tornavam-se personagens. Personagens que, àquela altura, estavam por toda parte.
RELATAR A SI MESMO
A crise do HIV/aids foi amplamente utilizada pelos governos nacionais e pela imprensa como estratégia de repatologização, atualizando as redes de controle sobre os corpos e as sexualidades dissidentes. Os movimentos libertários dos anos 1970 haviam feito um enorme esforço coletivo de compreensão daquilo que Foucault chamara de “o nascimento da clínica”, buscando com isso desmantelar as instituições disciplinares e as tecnologias biopolíticas. O contexto, entretanto, mudava de forma profunda com a entrada em cena do neoliberalismo e da aids. Como descreve Paul B. Preciado, o colapso das instituições disciplinares, paradoxalmente, anunciava um processo de privatização e transformação da clínica em indústria “farmacopornográfica”.
Hervé Guibert, presença fantasmática no Testo junkie de Preciado, não deixará de sublinhar a ganância dos laboratórios farmacêuticos e dos aventureiros capitalistas que viam na aids uma fulgurante oportunidade de lucros, assim como a ação de governos que percebiam na nova epidemia uma possibilidade de dizimar os indesejáveis.
Durante seus dois últimos anos, Guibert faz da proximidade com a morte o elemento central de suas obras. O tema da degradação do corpo já estava presente em suas produções anteriores, incansavelmente experimentais, mas a aids lhe permite radicalizar seu projeto literário. Um projeto certamente bastante controverso, o que o torna ainda mais sedutor.
Ao relatar a si mesmo, para evocarmos a já clássica obra de Judith Butler, Guibert expõe a dificuldade que todo sujeito enfrenta, em maior ou menor grau, ao construir uma narrativa em primeira pessoa. Se os dispositivos de controle prefiguram as modalidades discursivas por meio das quais um corpo é ficcionalizado até que seja capaz de dizer “eu”, os momentos de interrupção, obstrução e indefinição — em geral rechaçados dos discursos sobre a verdade do eu — evidenciam que não se pode traduzir narrativamente uma vida sem se responsabilizar pelas condições sociais em que ela emerge.
Na contramão do eu conceitual que orienta o nascimento da clínica (o indivíduo moderno), o eu experimental da literatura e da arte pode opor-se aos processos de captura e subjugação, indo além do domínio estrito da linguagem para operar como contraepisteme. Como estética da transgressão.
Diante da incerteza suscitada pela presença da morte, e pela possível vacina que o livraria de seu infortúnio, aquele que narra descobre que não pode dar um direcionamento coerente à sua própria história, passando a experimentar-se como desconhecedor de si mesmo e convidando o leitor a participar da cena de sua opacidade, a testar, por meio da escrita autoficcional, formas de estruturação narrativa que fujam do hipercontrole e da afirmação identitária de si. Eis a força ética da literatura.