Suzette.H.Elgin Divulgação.EditoraAleph

 

Língua nativa enfim chegou ao Brasil. A obra da linguista Suzette Haden Elgin inventa um mundo no qual as mulheres perderam seus direitos. Entretanto, longe de apresentar uma completa distopia, o livro traz uma curiosa criação: uma linguagem secreta da resistência tecida entre mulheres.

A narrativa passa-se em 2205, com mulheres encerradas em seus papéis de gênero, aprisionadas diante de líderes familiares do sexo masculino. Enfoca uma família de linguistas, em um mundo no qual o comércio interplanetário depende desses profissionais, com seu patriarca, genro, amantes, esposas e outras mulheres — muitas confinadas na Casa Estéril. Diante de atos de violência, essas mulheres tecem um idioma próprio, capaz de ser transmitido a muitas outras mulheres.

O livro foi originalmente publicado em 1984, época de um recrudescimento das conquistas feministas. A eleição de Ronald Reagan fomentou uma guinada à direita no governo, com o apoio de movimentos religiosos — assim, nada nos admira que um dos patriarcas na obra, seja “devoto do Modo de Vida Americano e da Santidade do Lar e todo o resto” e ainda declare que “foi o divórcio e a mania de dormir com todo mundo que quase destruíu este país no século XX”.

Na ficção científica, a geração predecessora havia fabulado intensamente sobre o feminismo nos anos de 1970, a exemplo das obras Os despossuídos, de Ursula K. Le Guin, The Female Man, de Joanna Russ, e Uma mulher no limiar do tempo, de Marge Piercy. Em artigo de 1986, a crítica Mary Kay Bray elogia a contribuição de Suzette Hagen Elgin ao sedimentar as discussões feministas, inserindo a discussão da linguagem no nó da trama.

O ato de nomeação adquire um propósito. Exemplos constam no prefácio de Leni Zumas: a palavra spinster (“solteirona”), existiria desde o século XVI; mas sexual harassment (“assédio sexual”) somente se tornou um termo legal em 1970. Hoje há os neologismos mansplaining (o ato de um homem explicar algo óbvio a uma mulher) e manterrupting (um homem interromper sistematicamente a fala de uma mulher). A linguagem acusa e define formas de pensar.

Ficção e realidade muitas vezes entrelaçam-se. Há uma referência, talvez involuntária, à resistência real feita pela poeta Anna Akhmátova (1889-1966): proibida de escrever pelo jugo estalinista, escrevia e queimava os próprios versos. Antes da destruição, entretanto, sussurrava “linha a linha para suas amizades mais próximas, que memorizavam o que tinha ouvido” para que os versos não se perdessem, a exemplo do poema Réquiem, cuja composição foi publicada em 1989. Na ficção de Elgin, para aprender a língua secreta, as mulheres tricotavam e “memorizavam a lista, curta porque em muitos anos ninguém ousara manter registros escritos”.

Um ano depois de Língua nativa, é publicada a distopia de Margaret Atwood, O conto da Aia (1985). Os livros guardam muito em comum, em especial, um retrato dos Estados Unidos ultrapatriarcal e o enfoque de “mulher” como um destino biológico. Na crítica, as duas autoras não aprofundam questões raciais e reforçam a binaridade de gênero. O livro de Suzette Haden Elgin teve uma repercussão relativamente restrita, dentro do círculo da ficção científica e dos estudos de linguística, mas terminou seguido por The Judas rose (1987) e Earthsong (1994). Diferente de Atwood, há um tom otimista a respeito das pesquisas acadêmicas num futuro fictício e da construção de uma resistência viável.


CRIAR UMA LINGUAGEM TAMBÉM É CRIAR UM MUNDO

A literatura insólita possui uma relação muito íntima com as palavras, pois a criação de mundos também passa pelo ato de nomeação. As experiências são vastas, da criação do termo “robô” por Karel Čapek, às experiências com gírias e palavras-valise de Anthony Burgess, sem esquecer a ideia de linguagem como ofensiva de Samuel Delany.

A vantagem de Língua nativa é o profundo conhecimento da autora sobre o tema, ao qual se dedicou durante toda a vida. Isso se transformou em uma obsessão, inclusive, no livro há um apêndice, o ​Primeiro dicionário e gramática de láadan. Como professora universitária de Linguística, contribuiu com o aprofundamento das conlangs, linguagens construídas. Ao longo dos anos, ressentia-se que o láadan, sua linguagem inventada, nunca chegou a se popularizar — bem diferente do élfico de J. R. R. Tolkien ou do klingon da série Star Trek.

A autora nasceu em 1936 e passou por uma fase conturbada da vida, perdendo o primeiro marido e, durante a pós-graduação, era mãe de cinco crianças, quando a escrita entrou em sua vida como forma de renda extra. Faleceu em 2015, aos 78 anos, deixando uma série de não ficção a respeito de “autodefesa verbal” (The gentle art of verbal self-defense, 1980).

Agora, sua obra chega ao Brasil pela editora Aleph, com tradução de Jana Bianchi. Língua nativa é lançado aqui em uma época de reconstrução, na qual a política passa pela disputa de narrativas em redes, sendo a palavra uma peça em um jogo maior. O livro aponta como assenhorar-se da própria linguagem seria um cruzamento tanto para reflexão quanto para a resistência. Chegou em boa hora.