Fernanda Melchor divulgação res.abr.21

 

A literatura está cheia de mulheres em torno das quais é criada a imagem de bruxa. O espaço ficcional mais apropriado para essas personagens parece ser as cidades pequenas, mas não só. Em geral, a existência da bruxa é mediada por burburinhos, por boatos que correm como o vento. Não existe bruxa sem mistérios, controvérsias, falsos testemunhos e projeções alheias. Os gestos dessa mulher valem muito menos do que a veloz interpretação que deles se faz. E ela acaba sendo repositório de fantasias, que saem do controle. Em dado momento, seu corpo é encontrado boiando em um canal de água à beira de uma rodovia que corta um povoado.

Esse breve resumo pode ser considerado o epicentro de Temporada de furacões, de Fernanda Melchor (foto), lançado no Brasil recentemente pela Editora Mundaréu. O livro foi originalmente publicado no México em 2017 e é o maior responsável por consolidar o nome de Melchor como um dos mais relevantes da literatura mexicana contemporânea. Antes, ela já havia publicado o livro de relatos Aquí no es Miami e o romance Falsa Liebre (ainda inéditos no Brasil) e, recentemente, publicou por lá mais um romance, Páradais. A autora é veracruzana – nascida no estado de Veracruz, região portuária no Golfo do México, muito atingida por furacões. O livro foi escrito durante o governo de Javier Duarte de Ochoa, um dos períodos mais violentos de Veracruz, em que teve vigência uma “guerra às drogas” travada pelas autoridades, com seus típicos resultados desastrosos. Apesar disso, o que se narra no livro não são as clássicas cenas de cabeças cortadas e exibidas em público pelos narcos em rincões mexicanos, mas as reverberações dessas tormentas na vida cotidiana das personagens, as linhas de força desse movimento circular. A história que começa com o corpo encontrado boiando continua com o aglomerado de personagens marginalizados, de moradias, existências e linguagens precárias. Não produzem nada e, socialmente, ocupam o limbo produzido pela crise do trabalho no capitalismo contemporâneo, representado pelo imenso excedente de mão de obra que o Estado empurra para a morte. Nesse sentido, o livro não poderia ser mais tensionador dos limites entre ficção e realidade.

Chabela é uma prostituta que sustenta o marido que tem deficiência física e vive da memória de uma masculinidade perdida. Seu nome é Munra. Ela é mãe de Luismi, um garoto viciado em “comprimidos”, que vive esperando que a promessa de um amigo engenheiro de arranjar-lhe emprego um dia se cumpra. Por acaso, um dia Luismi encontra Norma chorando na rodovia. Ela lhe conta que está fugindo por estar grávida do padrasto, como consequência dos abusos recorrentes que sofre. Luismi e Norma acabam se apoiando um no outro e se casam. Brando é um dos amigos de Luismi, com quem fuma maconha pelos acostamentos, se embebeda em biroscas e frequenta noitadas que a Bruxa menor promove na própria casa, depois da morte da mãe, a Bruxa grande. Além disso, ele foge de maneira desesperada do desejo sexual que sente por Luismi, o que aumenta gradualmente sua violência e irracionalidade interiores.

São personagens que fogem, mas que são incontornavelmente atraídos para o centro de um furacão. O desencaixe aparente que guia a narrativa nos primeiros capítulos vai se transformando no desvendar minucioso do feminicídio da Bruxa no meio da miséria de um campesinato-lumpesinato, em um suspense que alcança o efeito desejado.

Os parágrafos são longos e têm pontuação heterodoxa, ecoando Gabriel García Márquez em O outono do patriarca (1975). A voz narrativa é complexa e pode lembrar a polifonia de Juan Rulfo em Pedro Páramo (1955), quando Juan Preciado retorna à cidade de Comala e, no lugar de uma história, depara com chismes (ou “fofocas”, em nosso idioma) que sussurram versões para o que ali se passou. A região de La Matosa, em que a narrativa de Melchor acontece, é, de certa maneira, Comala, a cidade cujas histórias ganham vida e velocidade próprias, às vezes engolindo quem as conta e quem as escuta. (E por que não a leitora). Mas aqui, tem-se a sutil impressão de que quem fala é a rodovia, e não a terra. O som dos carros, a toda velocidade, parece informar que não há saída para a precariedade e a violência que a modernização petrolífera trouxe à região rural mexicana, desligando a população da terra e fazendo-a dependente dos automóveis e das estradas.

Um fato curioso é que não houve vez em que o livro tenha sido recomendado a mim desacompanhado da advertência: “mas pode ser que você não compreenda muito bem as gírias e a linguagem, é que a autora não é chilanga[nota 1]. Parece que a linguagem construída por Fernanda Melchor, de fato, é um veloz ciclone tropical, tem a temperatura quente e úmida de Veracruz. Pelo menos o tradutor, Antônio Xerxenesky, contou-me em um papo informal que foi uma de suas traduções mais difíceis e que precisou da ajuda da autora mais de uma vez durante o processo. Segundo ele, havia muitos termos que não constavam nos dicionários e cujas ocorrências nos buscadores da internet davam-se somente em letras de reggaeton (estilo musical de origem caribenha, que mistura reggae, hip hop, salsa e eletrônico, e que se tornou muito popular, de rua, callejero, na América hispânica). Tais anedotas dão conta da linguagem coloquial e periférica deste livro, que tem circulado internacionalmente e que se tornou um sucesso de crítica e de venda, rendendo à autora alguns importantes prêmios.

“Viver em uma cidade é viver entre histórias”, diz Fernanda Melchor na nota de abertura de seu livro Aquí no es Miami “[...] as [histórias] que circulam em jornais e telas, as que são transmitidas de boca em boca e mudam sob uma lógica semelhante à dos vírus, esses entes que, sem estar vivos sequer, replicam-se em um afã obstinado por permanecer no mundo”. A atualidade da metáfora é pura coincidência, porque ela foi escrita bem antes da atual pandemia. Sobre a recém-lançada edição brasileira, pode-se pensar nos ventos da narrativa que ganham autonomia sem que ninguém se preocupe em verificá-la e que, combinadas com a repressão dos desejos e com condições de exploração, violência e abandono por parte do Estado, podem formar furacões que assolam cidades inteiras.

NOTA

[nota 1] Nascida na Cidade do México, a capital do país.