AliceBechdel John D. and Catharine T. via MacArthur Foundation

Um café da manhã de cogumelos com psilocibina e finalmente eis o momento de exultação, aquele de uma completa compreensão da dissolução entre as fronteiras do “eu” e do “outro”. Esse preciso instante jamais voltaria de novo na vida de Alison Bechdel, e as imagens, por mais que ela tente, não conseguem, segundo a própria autora, dar conta daquele “êxtase silencioso” de um dia no começo dos anos 1980. No seu mais recente empreendimento de autoanálise gráfico-literária, O segredo da força sobre-humana (Editora Todavia, tradução de Carol Bensimon), a quadrinista mais uma vez produz uma obra que se revela a partir das costuras entre o “testemunho anedótico” do que sua própria autobiografia lhe fornece e uma rede de autoras e autores cujas vidas e obras dialogam com suas angústias.

Neste caso, a angústia é pontuada exatamente por essa sempre falha tentativa de entender quais as bordas de um “eu” que está, a essa altura de sua vida, em escalada descendente rumo à sua total desintegração. E, sim, a alegoria da montanha é recorrente no livro que já se lança com a epígrafe do refrão First there is a mountain, then there is no mountain, then there is, uma simpática canção folk de 1967 do cantor britânico Donovan, claramente inspirada num axioma budista ao qual o livro também faz referência.

Depois dos 60 anos, Alison conclui que o pico da montanha já passou, mas o horizonte da descida anuncia a força de todas as complexas fragilidades que surgem no caminho. E há de se fascinar diante dessas novas, porém menos psicodélicas descobertas, que só acontecem na pisada descendente da maturidade. O livro, que em tom irônico é várias vezes chamado como sua obra fitness, é uma longa caminhada por várias décadas em que a autora rememora suas constantes obsessões com uma ideia de vigor do corpo como estratégia de defesa ou de vulnerabilidade com as possibilidades de transcendência que fura a bolha do sujeito autodeterminado. Mais uma vez, ela produz nesse caminho um sem número de conexões com pessoas com quem ela é capaz de se relacionar em devir.

O devir Margaret Fuller, intelectual que viveu na primeira metade do século XIX e que ao lado de Ralph Waldo Emerson lançou uma revista transcendentalista na busca por entender se havia, de fato, um “eu” ou, tal como na viagem de cogumelos naquela manhã dos anos 1980, esse era um conceito egoísta e acreditar nele implicava, inevitavelmente, sofrimento. As moléculas de Alison Bechdel se misturam às moléculas de Fuller, como também se cruzam com as de Jack Kerouac, num devir que a toda hora se projeta nessa tentativa de chegar ao topo de uma montanha impossível de ser escalada. Mas é particularmente no devir Adrienne Rich, poeta lésbica que esteve simbolicamente com Alison quando ela já se percebia como uma sujeita sapatão no mundo, que a base intelectual desse livro se funda.

Um dos poemas convocados por O segredo da força sobre-humana é Estudo transcendental, de Rich. Está tudo lá: esse desejo de transformar a própria vida em matéria-prima do nosso estudo do mundo (e quem conhece a obra de Alison Bechdel sabe que é descascando a si mesma que ela maneja sua força criativa). Mas não só isso: é preciso estudar a si própria como uma atividade regular, física mesmo, que exige uma certa repetição, uma disciplina. A última estrofe, desenhada por Alison já nas últimas páginas desse novo livro, fala então de uma mulher sentada em sua cozinha envolta de objetos banais. A quadrinista sapatão e a poeta sapatão se encontram então nesse lugar de perceber que não se trata de “transcender esse mundo”, mas de agir e transformá-lo no aqui e agora da imanência, do que pode o corpo. Corpo este que, ao contrário da máxima iluminista cartesiana, produz, sim, uma existência.

A cronologia do livro – que apesar de ser organizado por décadas não se exime de fazer suas curvas inesperadas pela natureza definitivamente não-cronológica da memória – traz tanto a Alison que já conhecemos de Fun home, Você é minha mãe? e das tirinhas Dykes to watch out for (publicada no Brasil numa coletânea chamada Perigosas sapatas, também traduzida por Bensimon) quanto uma pessoa completamente inesperada por quem cria divisões (tais como “mente” e “corpo”) entre a persona intelectual ou artística e exercícios físicos. Aliás, estamos falando aqui de uma obra que, curiosamente, de dentro desse debate transcendental, nos finca nesse constante desejo de testar nossos corpos (naturalmente falo por mim neste momento), intercalando as diferentes obsessões físicas da autora – montanhismo, corrida, bicicleta, musculação, ioga, caratê... – com a irônica necessidade de se pensar sobre essas obsessões. A página em que ela reproduz um manual do “milagroso” treino de sete minutos publicado no The New York Times, com exercícios descritos a partir de sua trajetória pessoal de glórias públicas e decadências particulares, tem aquele senso de humor autodepreciativo que marca sua obra.

Alison faz suas conexões e eu faço as minhas: impossível não lembrar do filme As chances de regeneração (2002), de Su Friedrich, em que a diretora filma a si mesma em consultas médicas, das reflexões de Susan Sontag sobre o corpo adoecido, dos últimos anos da cineasta Barbara Hammer debatendo e filmando sobre a materialidade da morte. Uso, claro, apenas referências de mulheres que se relacionavam com outras mulheres. Talvez porque acredite que, de dentro desse corpo sapatão que não existe ora como mulher ora como pessoa em relação ao conceito de homem, a questão do “eu” e da transcendência é, de várias formas, a produção de um pensamento que corre por fora das normas de uma epistemologia heteronormativa em que o corpo saudável é aquele que serve aos padrões desse sistema/cistema. Seria ele, portanto, sobre-humano?