FabianaRodriguesLuisHenriqueDiegoMartins Divulgação

 

De tudo quanto pode ser dito sobre as mudanças no campo literário brasileiro nas duas últimas décadas, para ficarmos apenas neste século, um dos realces mais evidentes é a maior circulação de livros de autoria negra dos mais diferentes gêneros. Uma mirada nas principais apostas das editoras, das livrarias e dos encontros acadêmicos e principais eventos literários do país dão elementos para se fazer este desenho. Entender os percursos que culminam na maior visibilidade da autoria negra brasileira em nosso mercado editorial é trabalho que exige tempo e multiplicidade de olhares para considerar as diversas experiências, muitas destas individuais, que marcam essa mesma autoria. O recém-lançado Trajetórias editoriais da literatura de autoria negra brasileira (Malê Editora) pode ser usado como um norteador nessa empreitada. Mais estatístico do que analítico, o livro organizado pelos pesquisadores Fabiane Cristine Rodrigues (foto) e Luiz Henrique Oliveira (foto), ambos do Cefet-MG, busca mapear a produção negra brasileira em um recorte nada modesto de mais de século (1859-2020). Utilizo a terminologia negra brasileira em sintonia com a escolha dos autores que reconhecem “conjugada com outras dimensões, a especificidade desta vertente artística como fenômeno do século XX e o papel de precursores fundamentais atuantes no século XIX”. O que não significa dizer que eles não consideram as especificidades e a relevância social dos termos “literatura afro-brasileira”, “literatura negra” ou “literatura negro brasileira”.

A escolha do ano de largada do estudo não é arbitrária, pois 1859 abarca dois marcos de peso: a publicação do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, e de Primeiras trovas burlescas de Getulino, de Luiz Gama. Outro jeito de explicar a potência do ano de 1859 a partir da estatura desses dois autores são: as publicações da primeira mulher negra em toda a lusofonia e do pioneiro da poesia afro-brasileira. Portanto, é muito significativo que o professor da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do portal Literafro (letras.ufmg.br/literafro), Eduardo de Assis Duarte, escolha justamente um trecho de Maria Firmina para o prefácio da obra em que diz: “Mesquinho e humilde/ livro é este/ que voz apresento, leitor./ Sei que passará entre/ o indiferentismo glacial de uns/ e o riso mofador de outros,/ e ainda assim/ o dou a lume”. A citação mostra de um lado o gesto de escritoras e escritores negros ao tomarem a frente dos seus percursos de publicação e de outro o comportamento de época de pouco caso à autoria negra. Depois de Maria Firmina, muitas outras não se inibiram no trabalho de fazer circular seus escritos e, graças a uma insistência repetida no tempo até os dias de hoje, a indiferença apontada pela epífrase não pode mais ser tolerada e o mercado editorial entendeu com atraso o recado dado.

Se “todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão” como sentencia Antoine Compagnon, nos provocando a pensar que determinar o que é literário fatalmente exclui aquilo que assim não é considerado, é pertinente dizer que Trajetórias não é e não deve ser lido como um estudo definitivo, porque há sempre nomes que escapam a todo mapeamento, por mais rigoroso que o estudo seja. Provavelmente, não pela classificação do que é ou não literário, mas porque se uma das características da trajetória de publicação da autoria negra brasileira está nas ações individuais, nos coletivos e nas editoras de menor porte no mercado editorial, é possível que um nome e outro não sejam encontrados, restando aos leitores entenderem o livro como um mapa entre outros possíveis que possam ser feitos. A base de dados utilizada no estudo é o portal Literafro, com a colaboração de outros grupos e projetos de pesquisa. Dos dados disponibilizados no portal, Trajetórias utiliza-se das publicações individuais como forma de facilitar a organização das informações e a metodologia empregada.

Entre a autoedição e os quilombos editoriais, assunto de um dos últimos capítulos e versão ampliada do artigo Os quilombos editoriais como iniciativas independentes, também assinado por Luiz Henrique Oliveira e publicado na revista acadêmica Aletria (UFMG),[nota1] os autores dividem o mapeamento em poesia e narrativa (conto e romance) e não-ficção. Ainda dentro dessa organização, um capítulo se dedica a analisar os períodos de publicação, buscando tratar os fatores sociais, históricos e culturais relacionados à produção individual da poesia e da narrativa de autoria negra brasileira. Mais uma vez, devido ao largo período a que o estudo se propõe cobrir, por vezes a seleção dos dados históricos pode não ser consenso entre os leitores, mas certamente poderá ser ponto de partida para outros pesquisadores que façam uso dos dados coletados.

Romance, não-ficção, poesia e conto são os gêneros que ganham cada qual um levantamento em que se destacam casas editoriais, estados, autores e número de obras publicadas. As mudanças sociais no que se refere às legislações aparecem ao longo do texto como a implantação da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileiras nos níveis Fundamental e Médio, sinalizando outros trajetos que poderão ser trilhados pelo leitor.

A metodologia que privilegia as estatísticas, influenciada por trabalhos anteriores e que se tornaram referência para os estudos do campo literário brasileiro, como os da pesquisadora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), não dá o peixe, mas ensina a pescar.[nota2] Neste sentido, o livro reúne uma série de reflexões oportunas, algumas apenas sugeridas, mas que merecem ser desenvolvidas com mais densidade em estudos posteriores por não comporem declaradamente o escopo da publicação. A sua validade, no entanto, está justamente na tentativa de descortinar os mecanismos operacionais da indústria do livro no Brasil focalizando a autoria negra, as várias possibilidades de análise que dela partem, fazendo saltar aos olhos alguns números que poderíamos até supor, mas que a pesquisa organiza e confirma em nosso lugar. É o caso dos dados sobre os locais de publicação.

Ao mesmo tempo que o Brasil é um país em que mais da metade da população se declara preta ou parda de acordo com os dados do último censo do IBGE, a distribuição de recursos por regiões impacta diretamente em toda a dinâmica que permite o acesso à educação, aos livros e, por conseguinte, afeta a formação do leitor e o fomento à literatura. No período de 1859 a 2020, enquanto São Paulo e Rio de Janeiro concentram 98 e 61 obras do gênero poesia, capitais como Belém, Fortaleza, João Pessoa e São Luís têm apenas 1, cada. Do total de obras de poesia registradas (330), 73 são de edições do autor e 53 vêm a lume publicadas por quilombos editoriais. A editora que mais chegou “perto” desse número é a Mazza Edições, de Belo Horizonte (MG), com 22 livros. A discrepância dos números mostra as dificuldades dos escritores publicarem e a reação encontrada por eles como a publicação em coletâneas e edições de autor.

Se o gênero for romance (total de 85 obras registradas), São Paulo e Rio de Janeiro aparecem com 20 e 41, respectivamente, e apenas São Luís tem 3 publicações, entre as capitais do Nordeste anteriormente citadas. Por se tratar de uma forma de publicar que exige mais investimento se comparada às de poesia, a autoedição de romances aparece tímida, com apenas 3 livros. Para toda ação do mercado, uma contrapartida, que nesse caso é a criação de selos editoriais e editoras independentes contra o cerco das grandes editoras ou conglomerados editoriais.

É interessante notar também que as publicações de não-ficção apontam para estudos sobre temáticas afrocentradas e o aumento da autoria negra nos espaços acadêmicos, tendo como principais nomes em número de obras publicadas Muniz Sodré (27), Nei Lopes (17), Domício Proença Filho (16), Joel Rufino dos Santos (13) e Ruth Guimarães (11), para citar autores e autora com mais de dez livros publicados.

ALGUMAS PROVOCAÇÕES

O sexismo como aliado do racismo também não passa despercebido em muitas tabelas que compõem o estudo, em que predominam homens em número de publicações (apesar de não haver um levantamento em termos percentuais de gênero, autores e autoras são citados nominalmente). Outro dado também previsível é a concentração de publicações concentradas na região Sudeste, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo, o que realça a relação ainda direta entre concentração de renda e acúmulo de publicações. A respeito disso, os autores fazem uma consideração importante: não se trata apenas de constatar que há mais publicações no eixo Rio-São Paulo, mas deve-se refletir sobre os custos de transporte de livros dessa região para os demais estados, o que acaba por encarecer o preço de capa das publicações, comprometendo o acesso da população em geral.

As edições de autor e editoras independentes concentram-se no gênero poesia, talvez, na avaliação dos pesquisadores, porque também demandam menos risco de investimento editorial. Por outro lado, as editoras não especializadas ainda têm poucos autores negros em seus catálogos, o que nos leva a pensar no interesse genuíno por autorias afrocentradas. É fato que a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileiras nos níveis Fundamental e Médio, anteriormente citado, serviu como um incentivo para que o próprio Estado cumprisse a lei garantindo a compra de livros com essa perspectiva. Mas, ao mesmo que por força da lei há a aquisição de obras e o próprio incentivo à produção dessa literatura, por outro lado questiona-se o interesse por essa produção, “o real compromisso dessas editoras com a causa negra e até que ponto não se trata apenas daquilo que ficou conhecido no seio dos movimentos negros como ‘afroconveniência’, ou seja, apropriar-se das conquistas para obter vantagens econômicas”.

Por fim, o que também não causa surpresa, o estudo conclui que as editoras gerais ou que não atuam em nicho específico têm poucos autores negros em seus catálogos, enquanto editoras que assumem o discurso afrocentrado concentram um número significativo. Apesar dos meios editoriais ainda darem pouco espaço para essa autoria, a autoria negra brasileira tem sabido usar a internet, as tecnologias de informação e ocupar espaço nas Universidades a seu favor, mostrando ao mercado e aos leitores em geral discursos contra o silenciamento e a exclusão.

 

NOTAS

[nota 1] No artigo citado, quilombo editorial é entendido como um “conjunto de iniciativas no campo editorial, comprometidas com a difusão de temas especificamente ligados ao universo afrodescendente, com claro propósito de alteração das configurações do imaginário social hegemônico. Possuem caráter deliberadamente independente. Seus autores são preferencialmente negros ou, em alguns casos, não-negros comprometidos com o combate ao racismo em todas as suas formas”. Em: Aletria. Belo Horizonte, v. 28, no 4; p. 158.

[nota 2] Sobre o trabalho de Regina Dalcastagnè, ver o ensaio Para uma nova foto da literatura, publicado no Pernambuco