I
Paul Klee afirma que o olho se constrói de modo que a cavidade ocular se sustente de trechos sucessivos e, assim, para ajustar-se a um novo fragmento, precisa que o fragmento anterior seja abandonado.[nota1] Assim, quando vemos uma sequência de imagens, é preciso que os nossos olhos estejam em constante atividade para operar esse ajuste. E quando as imagens são sobrepostas ao texto, que tipo de construção é permitida aos nossos olhos? De certa maneira, a ideia de Paul Klee é também uma imagem surrealista: no metrônomo e nas lágrimas de Man Ray e em todos os olhos de Salvador Dalí, por exemplo, ali estão também as cavidades oculares e seus ajustes e transformações necessárias. Quando se chega a Nadja, obra clássica para o movimento nascido em Paris, na década de 1920, tem-se um trabalho fotográfico contínuo, ao longo do texto, por meio da profusão de imagens em diálogo com as derivas narrativas e espaciais de André Breton (1896-1966). Nesse sentido, parece pertinente pensar no abandono que nos é proposto pelo escritor diante da escolha dessas imagens: locais públicos franceses; personalidades como a atriz Blanche Derval e o poeta Paul Éluard; registros de jornais; desenhos. Em certo ponto, abandonar o trecho sucessivo de fotografias, operar com os olhos, é chegar à figura de Nadja, ao seu encontro com Breton.
Também na narrativa está presente a figuração do mecanismo ocular, como neste trecho no qual o narrador descreve o movimento dos olhos de Nadja: “Vi seus olhos de avenca se abrirem de manhã para um mundo em que as batidas de asas da esperança imensa pouco se distinguiam dos ruídos do terror, mundo sobre o qual só havia visto olhos se fecharem”. A força de uma visão que se coloca disponível ao mundo é o que sustenta a personagem, mistério que se impõe em sua forma de ver. No artigo intitulado A inserção das imagens fotográficas como estratégia narrativa na obra Nadja, [nota2] Michele Savaris afirma: “Através dos olhos se transmite grande parte da verdade e do sentimento que pode habitar alguém e Breton se utiliza desse meio para mostrar ao leitor que Nadja existe, ela não só fala como também aparece para o leitor. Essa crença com relação a sua existência parece ser o resultado da interação entre imagem e palavra, ou seja, a palavra vem para complementar e confirmar aquilo que aparentemente está mudo diante do leitor, mas ganha vida por respaldar-se na palavra.” Savaris, em certo sentido, observa um tipo de abandono ou ausência, algo que “está mudo diante do leitor” e que é impulsionado pela palavra. O olho como a forma de filtrar e organizar renúncias, a palavra como a dinâmica com que se sustenta o que o leitor não escuta e não vê: eis um tipo de limiar onde Nadja se encontra.
O livro foi lançado em 1928, e tem reedição no Brasil pela editora 100/cabeças, que vem dando continuidade ao seu projeto de oferecer uma variedade de livros surrealistas para os leitores brasileiros. Em um belo projeto gráfico de capa dura, com tradução do poeta Ivo Barroso (1929-2021) – mesmo tradutor de outras edições no país, inclusive, a da extinta Cosac Naify –, Nadja é uma obra que reúne não só a força do movimento e da produção de Breton, como também atravessa a produção literária das últimas décadas, reforçando o mecanismo do flâneur e do “acaso objetivo”, manifestações do inconsciente do sujeito: um tipo de materialização do desejo na realidade. Nadja é o nome que Breton escolheu para Léona Delcourt, nascida em 23 de maio de 1902, em Saint-André-lez-Lille. A primeira vez que os dois estiveram juntos foi em 4 de outubro de 1926. O livro é, sobretudo, o resultado de um encontro. No posfácio da edição, O ouro do tempo sem fio, Alex Januário escreve: “Dentre as obras de Breton, Nadja é aquela que, sem dúvida, provocou e ainda provoca no leitor uma agitação das mais profundas, emoções complexas capazes de levar à vertigem e ao encantamento”. Nesta complexidade, em constante agitação, o acaso objetivo parece manifestar a chance em nós, leitores, de nos deixarmos levar, entre a imagem e o texto, para outros tipos de encontros no recorte desse tempo sem fio e cheio de razão errante.
II
Os mapas que povoam a contracapa da nova edição de Nadja trouxeram, para mim, uma lembrança inusitada: o escritor suíço Robert Walser (1878–1956). Walser foi uma persona reclusa que buscou um tipo de literatura menor, a paradoxal possibilidade do sumiço por meio da escrita. Em um primeiro momento, não compreendi o porquê de sua figura ter ressoado junto à leitura de Breton, visto que a literatura surrealista não se faz no desaparecimento, pelo contrário, é uma literatura de certa revelação do inconsciente, e na qual não se existe na miniatura, mas sim, no delírio e na imaginação. A solidão de Walser também não está em confluência com a vida coletiva proposta por Breton e seu marxismo libertário. Diante das diferenças, então, pergunto-me: O que na produção e na figura de Walser fez com que eu acessasse o enigma de Nadja?
De acordo com Michel Schneider, em Mortes imaginárias (Editora A Girafa, 2005), os manuscritos deixados por Walser parecem mais com um tipo de mapa ou desenho do que com um conjunto de palavras. As mais de quatro mil páginas que foram repassadas, pela irmã de Walser, para o crítico literário Carl Seelig, em 1937, continham fragmentos de romances, poemas, partes de ensaios, notas. Walser chamou aquele conjunto de papel de “território do lápis”. Na profusão de palavras e códigos, o escritor suíço capturou, em uma espécie de fotograma, a sua ideia de como a linguagem funciona e perpetua-se. Assim também a operação em Nadja está posta, mas não como um desenho, e sim como colagem, fragmentos de um cotidiano em pura combustão que se tornam um mapa, território do lápis da imaginação e do desejo.
Walser, como Breton, também foi um conhecido caminhante. Tratar de sua letra é tratar de seus pés e, nesse aspecto, estar em contato com a paisagem, em Nadja, é estar em estado de captura do que se move no ritmo da cidade e de seus encontros. Segundo Rebecca Solnit, em Wanderlust: A history of walking, Paris foi o espaço absoluto do flâneur e continuou assim, ao longo do século XX, após a enxurrada surrealista, com Michel de Certeau e Jean-Christophe Bailly, por exemplo. Todos os terroristas do caminhar, como denomina a autora, surgiram na cidade na qual a paisagem já foi incansavelmente esmiuçada.
Uma cidade a ser vista é também uma cidade a ser narrada e a Paris de Nadja é o caleidoscópio de deleites e ações diversas do narrador: “Quem quiser me encontrar em Paris, pode estar certo de que basta esperar dois ou três dias para me ver passar para cima e para baixo, pelo fim da tarde, pelo boulevard Bonne-Nouvelle entre a tipografia do Matin e o boulevard de Strasbourg. Não sei por que meus passos na verdade para ali me transportam, pois lá me encontro quase sempre sem objetivo determinado, sem nada de definitivo, guiado apenas por esse dom obscuro de saber que ali se passará algo (?)”.
A personagem e sua presença onírica, quase etérea, também aparecem descritas como um tipo de paisagem, alguém cuja expressão ganha leveza em profundidade: “Revi Nadja muitas vezes, seu pensamento aclarou-se ainda mais para mim, sua expressão ganhou em leveza, em originalidade, em profundidade.” Enquanto conhecemos Nadja, estamos construindo a impressão de um assombro, alguém em fantasmagoria, paisagem em neblina. Enfim, compreendo a rima entre os mapas, os escritos de Walser e a narrativa de Breton: são caminhos que nos deixam em suspensão, como se tropeçar na palavra fosse o início de magia – o que está em oculto torna-se visível e o que sempre esteve ali, deixa de ser imagem e torna-se uma lembrança difusa.
III
Talvez o maior encontro proporcionado por obras importantes, como Nadja, seja com o seu próprio autor. Ao fim da leitura, está estabelecido um diálogo profuso com Breton, pois entra-se em contato com esse universo pessoal-teórico que vai desde os momentos em que ele revela uma dor de cabeça qualquer, até os que repensa questões surrealistas e cita referências, comenta obras, reorganiza seus pensamentos. Michael Löwy, em A estrela da manhã: Surrealismo e marxismo, afirma que “Breton é irrecuperável. Seu projeto imenso, necessariamente inacabado, de fusão alquímica entre o amor louco, a poesia do maravilhoso e a revolução social não é assimilável pelo mundo burguês e filisteu. Ele continua irremediavelmente oposto a essa sociedade e tão desconfortável quanto um belo osso – semelhante àqueles dos indígenas das Ilhas Salomão, cheios de inscrições e imagens – atravessado no meio da goela capitalista.”
Nesse sentido, destaco um trecho de Nadja em que a sua oposição à sociedade e seu traço errante e absurdo estão presentes de maneira afiada, uma navalha surrealista que corta o texto e nos mostra não só sua habilidade como autor, mas sua forma mezzo neurótica mezzo fantástica de lidar com o mundo: “Recordo-me também da sugestão feita por brincadeira certa vez a uma senhora, à minha frente, para que oferecesse à ‘Central Surrealista’ uma das surpreendentes luvas azul-celeste que usava nessa visita que nos fazia à ‘Central’, do pânico em que fiquei quando a vi a ponto de concordar, as súplicas que tive de lhe dirigir para que desistisse da ideia. Não sei o que poderia haver então para mim de tremendamente, de maravilhosamente decisivo nessa ideia de que a luva pudesse abandonar para sempre aquela mão.” Na imagem da luva, no movimento das mãos da senhora e no pânico do narrador estão os elementos que nos deixam com a sensação de que Breton continua aqui, à espreita de nós, esperando que seus leitores se rendam, mais uma vez, ao delírio que lhe convir.
NOTAS
1. Em: Teoria del arte moderno. Buenos Aires: Calden, 1979.
2. O texto faz parte dos Anais do Seminário Nacional Vanguardas, Surrealismo e Modernidade: Europa e Américas, realizado pela UFRGS em 2010, publicado pela revista Contingentia (v. 5, n°2; novembro de 2010) e disponível em: seer.ufrgs.br/index.php/contingentia/article/view/17673/10367 (p. 412-420).