MariliaGarcia RenatoParada

É a própria Marília Garcia quem faz questão de localizar o tempo como personagem central do seu novo livro, Expedição: Nebulosa. O protagonismo é anunciado logo num dos primeiros textos — “neste poema/ há um personagem/ que aparece em todos os/ poemas:/ o tempo” — e reiterado na forma como os acontecimentos e presenças são dispostos ao longo dos poemas, indo para frente e para trás, chegando e partindo, com tudo se embaralhando. É o tempo como regente supremo, que age à nossa revelia, fazendo com que a poeta e tradutora tente segurá-lo ou dominá-lo até os últimos versos do poema final da obra — “pode ir/ o fim aqui é um/ sim” —, escrito em formato de P.S. e dedicado à sua mãe, falecida em 2021.

A relação com o tempo parece importante para pensarmos a produção da carioca, hoje uma das principais vozes poéticas em atividade. O seu premiado Câmera lenta (2017) abre, de certa forma, transpondo uma melancolia à Baudelaire ao cenário mortiço que vivíamos politicamente no país pós-golpe: “um dia/ ela me disse/ ‘hola, spleen’/ e eu demorei mas depois/ percebi que era uma/ frase sobre/ o tempo”. Há ainda uma tentativa de realocação temporal no seu livro Parque das ruínas (2018): “Quando nos referimos espacialmente ao passado/ dizemos que ele está situado atrás/ e podemos apontar para trás indicando o que passou/ o futuro ao contrário fica para frente: o porvir é algo que nos leva adiante/ existe uma língua de uma tribo andina/ na qual essa lógica se inverte:/ o passado fica diante de nós à nossa frente/ afinal podemos ver o que aconteceu/ e o futuro ainda desconhecido/ fica atrás às nossas costas/ pois não o vemos”.

No novo livro, essa mesma ideia, que desmobiliza a fixidez das posições do futuro e do passado, é retomada no diálogo que Garcia faz com História natural, poema de Cacaso de 1974, num poema seu que resgata o mesmo título do texto do poeta marginal. Cacaso olha para seu filho pequeno e pensa na relação de herança e filiação dele com seus antepassados, e em como isso projetaria aquela — conturbada — América Latina da década de 1970. Garcia retoma o movimento ( “penso num poema do cacaso/ e na américa latina do futuro/ que um dia ele quis imaginar”) olhando para a filha e a mãe. Mas seu olhar parece se perder no tanto de conturbado que a América Latina do futuro ainda mantém, quando comparada com a do passado: “olho para a minha filha/ e juntas olhamos para/ esta américa latina do futuro/ estamos num túnel de fumaça/ e não consigo ver o que aconteceu”.

Essa dificuldade em enxergar o que aconteceu e, assim, entender algum porvir, imprime o tom dos poemas de Expedição: Nebulosa, que traz Garcia fazendo um balanço das conflituosas duas últimas décadas em que vivemos rupturas políticas, a ascensão do fascismo e o salto radical para o vazio da pandemia. Sobre o quê e como escrever em meio a todo esse cenário? Uma pergunta que o recurso dos dois pontos do título parece responder como um convite a aceitar a nebulosidade, a aceitar a regência tumultuosa que esse tempo (o nosso) impõe em meio ao movimento. (A ideia de aceitar a nebulosidade me faz pensar num trecho do romance Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa: “As fotografias dos anos 1970 envelheceram muito depressa. Havia um excesso de atualidade nas pessoas e nos acontecimentos que deixava cair uma cinza de efemeridade sobre as imagens”. Basta trocar a década de 1970 pelas tão próximas de 2000 e de 2010 para entendermos a vertigem que enxergava a autora portuguesa).

Escrevendo em meio ao desafio da nebulosidade, a poeta fez do seu novo projeto talvez o seu livro mais potente, tanto na beleza das imagens evocadas, na construção de um “documento” que localize onde estamos (lembro de um artigo de Flora Süssekind que aponta que os exercícios de escrita de Garcia “talvez devessem ser lidos com mais atenção, fora do âmbito estrito da poesia”), quanto na diversidade de recursos utilizados na arquitetura dos poemas. E alguns desses recursos apontam justamente os momentos em que a linguagem parece falhar para, enfim, quebrar. Como acontece no verso “aqui o poema para porque está sem/ ar” ou numa tentativa de diálogo com o também poeta Victor Heringer, falecido em 2018:

eu disse
oi, você sumiu.

e ele disse:

eu disse
como anda o tempo por aí?

e ele disse:

E por falar em diálogo, chama a atenção a forma engenhosa como Garcia distribui suas referências ao longo do livro, que vão de Drummond, Marcel Duchamp a Ana Cristina Cesar, passando por um disco de Nara Leão e chegando a um poema que embaralha textos de William Carlos Williams e Sylvia Plath, Gêmeos irlandeses, um dos mais fortes da obra: “um poema pode ser/ gêmeo irlandês/ de outro poema/ por exemplo/ você decide escrever um poema/ sobre a ‘cidade das abelhas’/ mas se depara com outro/ sobre uma ‘caixa de abelhas’/ [...] tanta coisa depende/ de uma caixa vermelha fechada/ contendo abelhas/ gatos ou galinhas”. Ao fim da leitura, Expedição: Nebulosa nos passa a impressão de ser a vitória do poema contra seu protagonista confesso: o tempo, este, o nosso, impreciso, voluntarioso e orgulhoso de que todas as suas imagens irão logo desaparecer.