AiméCesaireMariaJuliaMoreira

Quinxassa, antiga Léopoldville, capital da República Democrática do Congo. Um grupo bebe cerveja e discute qual é a melhor marca disponível no mercado; ali estão ambulantes, transeuntes, mulheres, homens, “dois milicos belgas” e diferentes pessoas que compõem um típico cenário urbano.

Ainda que pareça simples, a imagem criada na primeira cena de Uma temporada no Congo, de Aimé Césaire, explora um conjunto de tensões que afloravam na sociedade congolesa de então: a resistência ao colonialismo e a luta pela independência, o racismo, os limites do hibridismo cultural, as disputas geopolíticas da Guerra Fria, entre outras. A cena que abre o texto, aliás, emerge de uma opinião popular que, ironicamente, afirma: “Os brancos inventaram muitas coisas e trouxeram pra cá, algumas boas, outras ruins. Sobre as ruins, não vou me delongar hoje. Mas o que há de certo, certeiro mesmo, é que entre as boas tem a cerveja!”.

Publicada na França, em 1966, Uma temporada no Congo retoma os momentos finais do colonialismo belga no país que dá título à dramaturgia, assim como os primeiros meses da nação recém-independente. Entre impasses políticos diversos, a presença sombria do antigo colonizador e os interesses carnívoros do capital financeiro, acompanhamos o trabalho faraônico de Patrice Lumumba (1925-1961) para constituir uma unidade nacional capaz de superar os tentáculos coloniais e imperialistas.

Até então inédita no Brasil, o trabalho publicado pela Temporal – com tradução, prefácio e notas de João Vicente, Juliana Estanislau de Ataíde Mantovani e Maria da Glória Magalhães dos Reis – se divide em três atos que acompanham os eventos marcantes da descolonização congolesa. Preenchida de personagens ora citados por seus nomes reais (como Lumumba e o diplomata sueco Dag Hammarskjöld), ora como referências indiretas a outras figuras daquele momento, o texto trabalha no limiar entre a história, a literatura e teatro, levando para o espaço cênico uma produção capaz de se debruçar sobre as apreensões do povo congolês, de modo particular, e de toda a negritude, de modo geral.

Se no primeiro ato somos inseridos em um país ainda colonizado, cuja principal liderança política está presa, no segundo acompanhamos um governo legitimamente constituído, no qual Lumumba é o primeiro-ministro eleito. Já no terceiro, um mundo se despedaça e, sob um jorro de violência, golpismo e melancolia, assistimos a apatia internacional e a sádica tragédia que perfurou o país: o assassinato de Patrice Lumumba a partir da traição de seu aliado político, Mokutu (uma referência ao general Mobutu Sese Soko).

Parte fundamental da obra literária de Aimé Césaire, Uma temporada no Congo é uma das quatro dramaturgias escritas pelo autor martinicano. Ainda que conhecido no Brasil especialmente por seu Discurso sobre o colonialismo (1955), o engajado intelectual fez do teatro uma importante plataforma para interpretar as expectativas, limites e impasses da negritude e do capitalismo em suas dimensões culturais, estéticas, ideológicas e políticas. Em um trecho de entrevista presente no prefácio da edição publicada pela Temporal, Césaire destaca: “Meu teatro não é um teatro individual ou individualista, é um teatro épico, pois é sempre o destino de uma coletividade que está em jogo”.

Ao analisar o passado, atualizá-lo no presente e projetar o futuro, o teatro de Césaire adquire tamanha dimensão que, nas palavras de Eurídice Figueiredo Lethbridge, permite que a obra do autor “percorra toda a história do negro”.[nota1]

Para além do diálogo histórico-social, Uma temporada no Congo também é cuidadosa em sua formulação estética, amarrando os eventos da ordem política à constituição das personagens. Mesmo ocupando o papel de um líder sob a mira de uma espingarda, Lumumba vive situações que revelam sua humanidade para além de uma posição martirizante, a ponto de suas passagens pessoais também serem uma conexão com a vida pública. É como se os rumos da nação fossem indissociáveis do desejo do protagonista de dançar, cuidar dos filhos, amar e se encantar pela esposa. Nesse processo espinhoso e de concessões inegociáveis, os calorosos diálogos do primeiro-ministro com sua esposa Pauline são exemplares: “dentro de mim mesmo, sempre te chamei de Pauline Congo!”.

Além disso, junto do pensamento corajoso, convicto e utópico de Lumumba, a obra de Césaire nos permite notar um homem pouco afeito às contradições e concessões que alicerçam a realidade. Diferentemente de uma ação militante, o fardo do líder congolês não era mais conquistar a independência nacional, mas sim erguer e gerir um país a despeito de seus combates internos. Sem perceber a crônica de uma morte anunciada, os anseios do primeiro-ministro são atravessados pelo conservador, intransigente e rigoroso pragmatismo de Mokutu.

É nesse sentido que a queda do herói dá tons trágicos à dramaturgia. Não é apenas Lumumba que sofre uma traição, mas uma possibilidade de se sonhar, fazer e pensar um novo rumo da história. Mais do que idealizar um evento sangrento à revelia do cotidiano, Uma temporada no Congo mostra que a descolonização é um processo poroso, não linear e extremamente complexo.

Outro ponto importante no texto de Césaire reside na consciência do povo congolês, que não atua como figurante de batalhas em curso. Pelo contrário, a dramaturgia desenvolve as opiniões populares nas brechas do poder oficial, refletindo suas ambições, medos e entendimentos das atribuições dadas às bancadas do governo. Em outras palavras, essa percepção difundida e heterogênea pode ser notada pelas ideias que personagens terciários compartilham em bares e ruelas. Em uma cena em que Lumumba discute com Mokutu, por exemplo, um “louco” passa entre os dois e acidamente comenta “então vocês, os novos brancos... espero que aproveitem bem o Congo”. Já em outro momento, um homem afirma: “não trabalhamos pelo destino de um homem, mas pelo destino de um país”.

De maneira transversal aos argumentos que gradativamente constrói, a peça também se dedica a experimentações dentro do texto dramático. O protagonismo negro que sobe em cena traz consigo experimentações linguísticas de tom poético, como podemos perceber em um personagem como o Tocador de kalimba. Originalmente escrita em francês, Uma temporada no Congo não deixa de mobilizar palavras, anedotas e sentenças que compartilham as diferentes formas africanas de pensar, conceber e nomear o mundo, valorizando a negritude e as populações negras frente ao racismo e ao eurocentrismo branco que, infelizmente, ainda residem em ruas do Congo, da França e do Brasil.

[nota1]. Ver: Euridice F. Lethbridge, Do negro à negritude; significação do teatro histórico de Aimé Césaire. Em: Revista África, n. 4 (1981), p. 115-120.