Tamara KamenszainDivulgação

“Escrevo com o que tenho”, diz a poeta (ou poetisa?) e ensaísta Tamara Kamenszain (1947-2021) ao jornal argentino La Nacion, em 2016. Na época, entrevistada para comentar o livro Una intimidad inofensiva – do qual temos dois ensaios traduzidos por Luciana di Leone, pela Zazie Edições –, ela argumenta sobre a palavra “intimidade” e suas acepções; sobre como, quando conceito histórico, é relacionada a ideias de feminino e feminilidade, soando ofensiva para intelectuais. Porém, “não ofender, implica ofender”, ela diz mais adiante. Nessa mesma resposta, comenta sobre as acusações de, como poeta, escrever de forma demasiada intimista, sempre usando um “eu” realista (mulher, judia, filha) e desconfortável aos olhos de uma crítica textualista, ainda mais se tratando de poesia.

Se escrever em primeira pessoa do singular pode ser ofensivo e expositivo, imagine alternar entre ela e a primeira pessoa do plural, usando o feminino gramatical e trazendo à tona a linguagem não binária. Em Garotas em tempos suspensos (publicado pelo selo Círculo de Poemas com tradução de Paloma Vidal), Tamara lança mão de escrever não apenas com o que tem – uma pessoa de grupo de risco no período mais difícil da pandemia de covid-19, entre março e dezembro de 2020 –, mas com toda a intimidade inofensiva que carrega ao estar isolada e pensando seu lugar como poeta, antivate e uma intelectual-avó que caminha para o fim da história.

“Não posso saber/ serão outras que no verso/ de uma foto do século XX/ reconhecerão nossos nomes/ eu digo enquanto vou me retirando.”, diz os quase últimos versos do livro que começa com “Poetisa é uma palavra doce/ que deixamos de lado porque nos dava vergonha” seguido pela conjunção de contraste que funciona como rima no livro inteiro: “no entanto no entanto”. Em Garotas em tempos suspensos o ato de fazer a ressalva é a chance de olhar para trás, quase como o anjo da história de Walter Benjamin, com a lembrança das cinzas do passado causando incômodo aos pés. Ou ainda, como a proposta feita pela estadunidense Adrienne Rich, em 1975, de que as poetas deveriam re-visar como ato de sobrevivência.

Aqui, neste que é o último livro de Tamara Kamenszain, são as poetas latino-americanas que sustentam a suspensão desta poeta-avó-garota que se encontra às voltas com as nomeações. Para ela, a poetisa “agora volta em um lenço/ que nossas antepassadas amarraram/ na garganta de suas líricas roucas.” para garantir espaço “nos cobiçados submundos do cânone”. O que chama de “lírica rouca” são alguns nomes como das uruguaias Alfonsina Storni (1892- 1938) e Delmira Agustini (1886-1914) que foram nomeadas de poetisas, mas acabaram mortas pelos musos da intimidade. Tamara Kamenszain costura uma espécie de bordado ao redor dos termos poetisa, musasobrenome e vate, para que no tecido do sistema literário esses pontos não surjam como meros termos de um dicionário especializado, mas sim como divisores de hipocrisia canônica. Também há a escolha de “minhes netes” e a brincadeira sobre a impossibilidade de uma poeta ser “vata”: “A palavra feminicídio/ não estava entre nós/ a palavra muso/ não estava entre nós/ a palavra vata/ não é para nós”. Aliás, a escolha de Paloma Vidal em manter na tradução o termo vate – que designa o poeta/profeta, o bardo, sempre no masculino – é algo que ajuda os poemas a deslizarem com o atrito necessário para perceber como certas nomeações, em muitas línguas, só funcionam para um dos lados da lógica binária.

Os poemas de Tamara Kamenszain avançam porque o presente é o seu método, da prática poética ao ensaísmo. Um verso de O eco da minha mãe (7Letras, tradução de Paloma Vidal) diz que “no presente me sinto livre”, para fechar um livro escrito durante dois anos observando e convivendo com a mãe portadora de Alzheimer. Porém, escrever no presente também implica fazer o movimento de estar suspensa, olhando para o passado e para o futuro, para as antepassadas poetisas e es netes da geração que vem. Ao mencionar a poeta peruana Blanca Varela (1926-2009), diz que, com a perda do filho em um acidente, ela também “perdeu o dom da palavra” e mandou a neta receber o prêmio em seu lugar: “A avó do nada parece ter cedido a palavra para sua neta/ para que diga apenas/ que não resta nada a dizer”.

As figuras da avó e da garota se juntam nas penúltimas partes de Garotas em tempos suspensos para chegar ao fim da história, que também é um – e não apenas “o” – começo de outras. Apesar de ser avessa à metáfora como única figura retórica da poesia, aqui Tamara faz do ato da avó ceder a palavra para a neta algo que se passa para todas as pessoas que escrevem e que não recebem a visita da musa e, muito menos, são vates. Porque a poesia seria “– antivata por excelência –” e completa “sem nostalgias, sem mistificações/ traz para o presente o que já existia antes/ e o deixa suspenso sem happy ending”.

Longe de serem personagens, a antepassada, a poetisa, a avó, a garota e a antivate são as figuras retóricas dos poemas do livro e a voz poética é a Tamara Kamenszain: nome e sobrenome, crítica e poetisa, observando a si mesma como parte de uma coletividade. O que podemos chamar de poema, ou poema-ensaio, para a escritora é um procedimento em que ela habilmente faz o bordado e a costura do texto, em referência ao ensaio de 1983 (traduzido pela Clarisse Lyra e publicado na revista Capivara). E ela pensa esse método na conversa, essa prática íntima há muito dada como própria da convivência entre mulheres. Os nomes das poetas apontam a presença delas no meio do isolamento: Alfonsina (a Storni), Alejandra (a Pizarnik), Anne (a Carson) e também Marília (a Garcia). A obsessividade artesanal da costura também está na forma que se dá a escansão dos poemas, porque nenhum enjambement é feito em vão: “risco era uma vez escrevo agora ou nunca”.

E, nesse ultimato, nada poderia ser tão presentificado quanto um livro construído como procedimento de uma proposta: a de escrever um artigo sobre as poetas mulheres do século XX, para o livro História feminista de la literatura argentina. E da mesma forma que Tamara começa o livro, dedicando à escritora mexicana Margo Glantz (traduzida também por Paloma Vidal para Relicário Edições) e com a epígrafe “Estamos diante de um tempo que não é o das datas”, do filósofo Georges Didi-Huberman, eu termino fazendo a ressalva: e no entanto e no entanto, Tamara morreu mas segue suspensa e os seus poemas avançam, essa garota-avó-poetisa que nos ensina a escrever com o que temos para convencer ninguém.