Jonathan CraryDivulgação

No livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, publicado em 2013, o crítico Jonathan Crary argumenta que o sono subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo global. Na contramão das exigências de um sistema marcado pela disponibilidade para trabalhar e consumir 24 horas por dia, sete dias por semana, o tempo que passamos dormindo impõe-se como a última fronteira não colonizada pelo capital.

No entanto, como afirma Crary, parte considerável do orçamento de defesa dos Estados Unidos é destinada para pesquisas que buscam fórmulas para criar um estado permanente de vigília. Se, inicialmente, esses estudos eram restritos ao campo das técnicas militares, atualmente eles visam atingir também os trabalhadores e consumidores.

Em seu mais recente livro, Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista, traduzido por Humberto do Amaral e publicado pela Ubu Editora, o crítico defende que um futuro habitável e partilhado só será possível se desvinculado dos sistemas destruidores e das operações do capitalismo 24/7. Esse futuro deverá ser capaz de frear a digitalização de nossas vidas e alterar radicalmente a forma como consumimos e nos comportamos.

Um dos grandes méritos de Terra arrasada — que, segundo o autor, alinha-se à tradição de agitação social e pode ser lido como continuação do livro anterior — é a insistência na inseparabilidade do colapso ambiental da desintegração social provocada pelo “complexo internético”.

Ainda que as plataformas digitais estejam repletas de contradições sociais, para o autor, uma análise dialética jamais poderia percebê-las como ferramentas para a luta de classes, uma vez que são incapazes de estimular a compreensão viva da interdependência humana. Se, num primeiro momento, a internet parecia mais livre ou aberta, isso só foi possível porque os projetos de financeirização e expropriação levaram alguns anos para alcançar o ponto atual de aceleração.

“O complexo internético é hoje inseparável da abrangência imensa e incalculável do capitalismo 24/7”, escreve o autor. Ele lembra ainda que os aparelhos e serviços digitais que usamos compulsivamente em nosso dia a dia não poderiam existir sem a espoliação destrutiva da biosfera terrestre. A força motriz por trás do capitalismo do século XXI continua sendo, portanto, a pilhagem de matérias-primas da Terra e o saque de bens comuns.

Quando decidiu escrever Terra arrasada, Crary não queria somar-se ao amontoado de textos que, na década passada, criticaram os piores aspectos da internet, mas, ao mesmo tempo, aceitaram sua inevitabilidade. Contrariando analistas que presumiam que a internet poderia aliar-se aos esforços voltados a arranjos sociais mais justos e igualitários, seu objetivo era, por um lado, chamar a atenção para a aceitação passiva da cultura tecnológica contemporânea, e, por outro, alertar que formas de recusa são não apenas possíveis, mas fundamentais. Afinal, não há como fazer oposição ao capitalismo apostando nos aparatos e sistemas que são constitutivos de seu funcionamento.

Embora as frases de efeito e o tom (por vezes exageradamente) panfletário do texto possam gerar ruídos no entendimento, Crary não está profetizando que a internet desaparecerá; e nem mesmo pedindo que as pessoas abandonem suas atividades online logo após a leitura do livro. O que está em questão é algo mais complexo. Trata-se da necessidade de desfazer a ilusão de que a civilização mundial adentrou uma era cujas determinações materiais estão além de qualquer possibilidade de intervenção. Ao rejeitar esta tese, o livro busca contribuir para a construção de uma imaginação política que se oponha às formas de compartilhamento impostas pelas grandes corporações.

“Uma camada fundamental da luta por uma sociedade igualitária nos próximos anos consiste na criação de arranjos sociais e pessoais que abandonem a dominância do mercado e do dinheiro sobre nossas vidas em coletividade. Isso significa a rejeição de nosso isolamento digital, a reivindicação do tempo como tempo vivido, a redescoberta de necessidades coletivas e a resistência a níveis crescentes de barbarismo, incluindo a crueldade e o ódio que emanam dos ambientes on-line. A tarefa de uma reconexão humilde com o que resta de um mundo repleto de outras espécies e formas de vida será igualmente importante.”

No prefácio à edição brasileira, Crary escreve que muitas das resenhas de Terra arrasada concentraram-se, sobretudo, nas “declarações categóricas” presentes em suas primeiras páginas, quando, na verdade, a parte mais importante do ensaio estaria no capítulo três. De fato, é no terceiro e último capítulo que encontramos as análises imprescindíveis de um pesquisador consagrado por estudar as transformações históricas da percepção e a consequente modernização do observador.

Ao debruçar-se sobre os danos infligidos ao olhar, ao rosto, e à voz pela imersão permanente em ambientes online, Crary nos oferece uma leitura perturbadora dos sistemas biométricos. Seu foco, no entanto, não são as questões de privacidade e vigilância, mas os procedimentos voltados a estabelecer padrões sobre aquilo que olhamos diante das telas.

Hoje, corporações de alta tecnologia projetam sua ganância irrefreável ao redor de uma “economia da atenção”, na qual o sucesso financeiro exige a captura do maior número possível de olhares. Paradoxalmente, um objeto visual capaz de capturar o olhar deve corresponder a algo desprovido de ambiguidade ou complexidade, impedindo a interação do olhar com outros sentidos e com a imaginação. O que está em jogo, portanto, é um empobrecimento sem precedentes da percepção e das capacidades sensoriais, necessárias para que nos liguemos uns aos outros.

Em meio à intensificação dos processos de derrocada social e ambiental, a sobrevivência da vida humana no planeta dependerá da conscientização de como paradigmas fundamentais da ciência e tecnologia ocidentais nos trouxeram até aqui, além de uma profunda reconsideração dos nossos desejos e necessidades. Essas, segundo Crary, são tarefas preliminares para as lutas travadas no presente. E, certamente, para todas aquelas que não tardarão em se espalhar pelo mundo, impulsionadas pela corrosão de um sistema em fase terminal.