Gertrude Stein AlvinLangdon GeorgeEastmanCollection Wikicommons

Muito conhecida, mas nem sempre tão lida, a obra de Gertrude Stein (1874-1946) acaba de ganhar outra tradução brasileira. Botões tenros, publicado recentemente pela Edições Jabuticaba, com tradução de Arthur Lungov, e até então inédito por aqui, conta com um estranho conjunto de textos em prosa que poderiam ser classificados como uma espécie de prosa poética, embora não sejam bem isso.

Não são exatamente poéticos, estão mais para antipoéticos, e talvez sejam prosaicos só em certo sentido, já que se dedicam, em geral, a descrever objetos comuns, de uso cotidiano, como guarda-chuvas e cadeiras, além de diferentes pratos de comida, a exemplo de massas folhadas e salmões.

A maneira como Stein descreve todas essas coisas, no entanto, não é nada comum, seja pela abordagem totalmente inusual ‒ muitas vezes a autora parece falar de outro assunto ‒ ou pelo tipo de torção linguística que realiza no texto. Botões tenros é um livro diferente de tudo, escrito em uma língua desarranjada, como se fosse estrangeira, situada no limite da legibilidade.

Por exemplo, em Rosas rubras, temos uma definição como esta: “Uma fresca rosa rubra e um rosa corte rosa, um colapso e um buraco vendido, um pouco menos quente”. Vai do leitor tentar decifrar, após reler seguidas vezes. Já em Batatas, nos deparamos com a seguinte descrição: “No preparo do queijo, no preparo de biscoitos, no preparo da manteiga, nisso”. Nem de batatas o texto fala.

O livro inteiro se organiza como um caderno de verbetes ou um cardápio, ou notas esparsas, quase sempre apontamentos bem curtos, às vezes um pouco mais longos, mas a verdade é que os textos estão longe de informar o verdadeiro sentido das coisas. Estão mais para antiverbetes, já que desinformam mais do que orientam. Vem daí grande parte da graça do livro, inclusive o sentido de humor que seus textos carregam.

Desde o título, se pensarmos bem, o leitor já tem uma rápida ideia do tipo de experiência literária que terá. Afinal, a que tipo de botões o título se refere? Pois se os botões do título podem se referir a uma flor antes de desabrochar, são também pequenas peças de uma roupa, e o livro é repleto de roupas ‒ Stein fala de vestidos, casacos, chapéus, paninhos e de botões.

Nesse caso, não faz sentido que os botões sejam tenros, palavra usada em geral para designar coisas moles, além de graciosas. Mas faz sentido nesse livro de Stein, no qual botões podem ser molengas como geleia, ou tenros como frangos, da mesma forma que Salvador Dalí, em seu célebre quadro A persistência da memória, pintou relógios derretendo. Vem daí, aliás, o aspecto surrealista do livro, à medida que seus textos desfiguram os objetos a ponto de torná-los praticamente irreconhecíveis.

Quanto aos frangos, ao lado das batatas, eles ocupam lugar de destaque no cardápio de Stein, pois a autora dedica a eles não apenas um fragmento, e, sim, quatro, embora eles não sejam exatamente apetitosos. É o caso desse: “Ai um termo sujo, ai um terço sujo ai um terço sujo, ai um tender sujo”.

De acordo com o próprio tradutor, Arthur Lungov, que também escreveu um posfácio esclarecedor à edição, o livro faz parte da produção mais radical de Gertrude Stein. Trata-se de um livro radical também por este motivo: seus textos são estranhos, malucos, inclassificáveis. Radical no sentido em que Haroldo de Campos se referia à literatura de Oswald de Andrade, porque vai na raiz da pesquisa com a linguagem.

Para Lungov, no entanto, Botões tenros exerceu maior impacto, inclusive em nossa própria cultura literária, do que os outros livros da autora, mesmo os mais célebres. E talvez ele tenha mesmo razão. Ele diz que a literatura nonsense de Stein teve grande influência, por exemplo, sobre os poetas concretos, que preferiam a produção mais experimental da autora, e não tanto volumes como A autobiografia de Alice B. Toklas, classificada por Augusto de Campos como “fofoca experimental” que “chateia mortalmente”.

Na nossa poesia contemporânea, escritoras como Marília Garcia e Angélica Freitas também leram a obra mais louca de Stein com atenção. Angélica chegou a escrever um poema que é uma anti-homenagem à autora, na banheira com gertrude stein, exemplo de sua poesia nonsense.

Mas o livro de Stein também exerceu grande influência em quase todos os movimentos de vanguarda do século XX, e ainda é tratado como o resultado literário mais direto e expressivo do cubismo. Escrito entre 1912 e 1913, publicado originalmente um ano depois, logo no início da trajetória da autora, os textos de Botões tenros foram concebidos ao longo de um período de grande diálogo de Stein com Georges Braque e Picasso, ela que preferia a convivência dos pintores à dos poetas.

Portanto, quem conhece a obra de Stein da Autobiografia ou mesmo dos romances e contos, a exemplo de Três vidas e Ida, todos traduzidos para o português, talvez vá estranhar esses Botões tenros. De fato, trata-se de uma iguaria rara, delicada. Como diz a autora em Manjar: “Manjar é isso. Tem dores, dói quando. Não ser. Não ser estreito [...] É melhor que uma coisinha que é suave bem suave. É melhor que lagos inteiros lagos, é melhor que semear”.