A mitologia dos Estados Unidos, durante boa parte do século XX, vendeu ao mundo variações da imagem do jovem revoltado e do aventureiro/arrivista, ou mesmo a junção de ambas num só corpo. É o que encontramos nas festas de O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, nos resmungos de Holden Caulfield, de O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, e no topete de James Dean. A fila de exemplos é infinita, mas aí vieram os anos 1960 e ficou bem difícil para essas imagens aparecerem sem fissuras como antes. É só ler o tom melancólico com que Joan Didion olhou para a cultura norte-americana da dobra do século em Rastejando até Belém, com aquele célebre ensaio que é, a o mesmo tempo, cartão de visitas e santinho de sétimo dia da geração hippie. Ou mesmo escutar o álbum Velvet Underground & Nico (1967), em que Lou Reed perfilou os afetos de personagens que até então eram jogados para baixo do tapete, com uma cozinha sonora em tom de marcha fúnebre.
Não é de estranhar que o escritor norteamericano Denis Johnson (1949-2017) tenha escolhido um trecho de uma letra do Velvet como epígrafe ‒ e referência para o título ‒ do livro de contos Filho de Jesus, que chega ao Brasil quase três décadas após seu lançamento original, com tradução de Ana Guadalupe. When I’m rushing on my run/ And I feel just like Jesus’ son, escreveu Reed num dos versos da canção Heroin, que descreve a sensação de um pico como aposta derradeira para fugir da realidade, estratégia aqui já bem distante dos sobrevoos criativos de qualquer porta da percepção.
Filho de Jesus é uma 3x4 rasurada daqueles EUA entre as décadas de 1960 e 1970, a partir de um narrador que o autor parece usar para performatizar sua experiência no vício. Na maioria dos contos, o leitor é tragado para a vertigem da droga na forma quase labiríntica com que o autor introduz as suas histórias.
É o caso do conto que abre o livro, Desastre de carro no meio da carona: “Um vendedor que dividia bebida dormiu ao volante e perdeu o controle... Um cherokee mamado de uísque... Um fusca que é quase uma bolha de haxixe, guiador por um universitário... E uma família de Marshalltown que bateu de frente com outro carro e matou para sempre um homem que estava saindo de Bethany, Missouri, pelo lado oeste...”. No restante da trama, temos as desventuras de um junkie e de um bebê que sobrevivem ao desastre do título. No conto Emergência, talvez o mais impactante, um grupo de dependentes em surto toma conta de um hospital, deixando no ar uma aura de tragédia iminente e de humor (quase, quase) involuntário. Mas em meio a passagens perturbadoras, Johnson também insere clarões de beleza, como o seguinte trecho de O outro homem, que se passa quase todo no dancefloor de uma espelunca chamada Kelly’s, mas que ainda assim é um cenário onde é possível encontrar uma epifania emocional: “Estava ali. Estava sim. O longo caminho pelo corredor. A porta que se abre. A bela desconhecida. A lua rasgada e remendada. Nossas mãos afastando as lágrimas com um toque. Estava ali”.
É redutor caracterizar Filho de Jesus como um livro de contos, apesar de assim sua estrutura nos ser apresentada. Ao longo da obra temos um mesmo narrador, os mesmos bares duvidosos, os mesmos picos químicos e os mesmos personagens que surgem para logo depois se evaporar, formando talvez o grande romance possível de um país que já não se reconhece no espelho.