Taís SantAnna Machado Divulgação

Nascida no interior de Minas Gerais e órfã de mãe aos oito anos, Benedita Ricardo de Oliveira (1944- 2018) foi levada para trabalhar como empregada doméstica em São Paulo ainda bem jovem. Ao ver que ela dormia junto com os cães da casa e comia restos, uma vizinha a indicou para trabalhar para uma família alemã, que a levou para seu país de origem. Tempos depois, de volta ao Brasil, Benê Ricardo, como era conhecida, foi convidada para ser professora de culinária alemã no pioneiro curso de Primeiro Cozinheiro do Senac, em Águas de São Pedro (SP).

Além de professora, também se tornou aluna, por meio de uma bolsa de estudos. Ao se formar, em 1981, foi indicada pela escola para ser a primeira cozinheira de um restaurante em um hotel cinco estrelas na capital paulista. Chegando lá, a pessoa que a recebeu mandou ela limpar toda a cozinha ‒ o que ela fez, mas recusou a vaga em seguida. “O senhor deveria ter me respeitado. Mas sua cozinha estava precisando mesmo de uma limpeza”, disse Benê. Nem mesmo sua qualificação comprovada era capaz de abrir portas e evitar humilhações como essa para a profissional negra.

A história é uma das que compõem o livro Um pé na cozinha: Um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil, escrito pela pesquisadora, poeta e escritora Taís de Sant’Anna Machado e recém-lançado pela Editora Fósforo. A obra é baseada em sua pesquisa de doutorado em Sociologia, defendida na Universidade de Brasília (UnB), e traz uma contribuição preciosa para o campo de estudos críticos da alimentação no Brasil, lançando mão de depoimentos e registros históricos de trabalhadoras negras e também de estudos teóricos de intelectuais negras. Apesar da dureza das realidades narradas, a escrita poética de Taís e a riqueza de sua perspectiva tornam a leitura fluida.

A autora traça um percurso histórico de fôlego, indo do período escravista até a contemporaneidade. Ao começar as entrevistas, ela conta que logo percebeu que focar apenas no racismo antinegritude seria deixar de perceber as complexidades dessas mulheres negras (“[...] permita que eu fale, não as minhas cicatrizes/ Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes/ É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir”, como tão bem resume Emicida na canção-hino AmarElo). A tese central da pesquisadora é mostrar a agência e resistência delas ‒ sem, no entanto, reforçar a imagem romantizada de heroísmo ou abnegação.

Nos quase três séculos de período escravista, era a mão de obra feminina, negra e escravizada que produzia alimentos no Brasil, tornando a cozinha desde então um espaço de mulheres negras, como permanece até hoje. A autora encontrou indícios de que o trabalho doméstico já era visto como o mais degradante. As cozinheiras escravizadas enfrentavam longas jornadas, dormiam no chão da cozinha e eram impedidas de ter contato com sua família, além de serem vítimas de violência física, moral e sexual. O trabalho na rua ‒ ou “porta afora”, realizado por escravizadas postas ao ganho ou por mulheres libertas e livres ‒ era preferível ao doméstico.

No século XX, a narrativa de harmonia racial, elaborada por intelectuais brancos, mostra cozinheiras negras alegres e cordiais, a despeito de toda a exploração que sofrem. A violência é naturalizada e a imagem da cozinheira negra se cola ao passado escravista, criando o estereótipo branco da “mãe preta” cozinheira, cuja imagem mais conhecida é a personagem Tia Nastácia, de Monteiro Lobato. A autora analisa também de que forma a obra de Gilberto Freyre ‒ autor frequentemente citado nos estudos da alimentação ‒ contribui para a construção desse estereótipo para embasar a tese de que o Brasil é uma democracia racial (para quem mesmo?).

O desenvolvimento do país vem acompanhado da transformação das ruas em espaços de sociabilidade das elites e classes médias brancas, com base no modelo europeu. Hotéis e restaurantes começam a surgir nesse contexto. Na esteira da modernidade, é preciso trocar as cozinheiras negras, que remetem à escravidão, por chefs brancos, explica a pesquisadora. Surgem novas categorias profissionais, que excluem essas mulheres. Mais recentemente, a autora destaca que a pretensa “popularização” da gastronomia a partir da década de 1990 não se reflete em uma distribuição mais igualitária desse prestígio entre os trabalhadores da cozinha.

A socióloga optou por entrevistar justamente cozinheiras em posição de chef por elas estarem disputando espaços de prestígio no campo. A opção da maioria das entrevistadas por estudar gastronomia costuma causar incômodo aos familiares. “Conscientes da violência, da exaustão e da expropriação econômica que o trabalho na cozinha significou durante séculos, e que ainda significa para a maior parte das cozinheiras negras, como entender que uma filha pode escolher a cozinha, quando a cozinha sempre foi o lugar causado pela falta de escolha?”, questiona. Mesmo quando conquistam posições de chefia, as cozinheiras negras são lembradas o tempo todo que estão “fora do lugar”.

A agência e resistência das cozinheiras negras são abordadas no final do livro, em um mosaico não cronológico que enfatiza quatro estratégias. A primeira é a autodefinição, ou seja, “a construção de uma definição de si que contraria estereótipos, recusa papéis de subserviência estabelecidos e reivindica humanidade”. A segunda é a sabedoria culinária: além de conhecer pratos refinados para preparar no trabalho, as cozinheiras também precisam desenvolver formas de alimentar a si e a suas famílias com muito pouco. A terceira envolve a solidariedade na cozinha, com a criação de redes de apoio. Por fim, o cuidado com a família e a comunidade negra de seu entorno permite o sonho de um futuro melhor. Um pé na cozinha é um livro necessário ‒ não somente para estudiosos da alimentação, mas para todos que querem entender mais sobre o Brasil.