A definição está lá, num ensaio de Silviano Santiago chamado Singular e anônimo, sobre as dificuldades de travessia da linguagem poética: “O poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre no entanto um lugar para um destinatário que, apesar de ser sempre singular, não é pessoal porque necessariamente anônimo”. O binômio singular-anônimo me vem à cabeça, quando penso na relação que o poeta e editor Otávio Campos estabelece com os objetos (de desejo e também do desejo-com-repulsa) presentes no seu tatear os destroços depois do acidente. Um livro que parte da fantasmagoria de um ator pornô famoso em filmes do canal erótico XVideos, para nos levar a refletir como a pornografia, ainda que anônima (como o poema), precisa também ter um alcance singular (mais uma vez como o poema).
“Quando escuto a música eu penso no filme/ Feito de recortes de filmes/ do XVideos protagonizados pelo menino/ Então eu baixo esses vídeos para o meu computador/ Recorto as cenas em que o menino aparece/ sem que esteja pelado por completo/ E sem que envolva alguém pelado por completo”, escreve Campos, nos versos de abertura do livro, orquestrando o melancólico desejo (vão) do poeta em tomar apenas para si a fantasia pública da internet. “Isso é um procedimento para contar a verdade/ E também para transformar o menino naquilo que quero/ Nós não vivemos a criar furos, você me pergunta”, completa a seguir.
No mesmo Singular e anônimo, Santiago descreve o impasse vivido pela poeta Ana Cristina Cesar (1952-1983), a Ana C., diante de dois tipos recorrentes de leitores que a cercavam. Havia aqueles que deixavam de lado questões estéticas e liam os seus textos quase como detetives, caçando os detalhes biográficos da autora. Por outro lado, para alguns a vida particular da poeta não importava, e o poema valia apenas por sua força “literária”. Nenhum dos dois, no entanto, interessava a Ana C. “Nem um único nem todos. Qualquer, desde que enfrente as exigências: singular e anônimo”, ressalta Santiago.
“A intimidade era teatro”, escreve Ana C., assinalada por Campos em uma das epígrafes do seu livro, junto com versos da cantora-personagem Lana Del Rey e por aquela máxima lacaniana que aponta que a relação sexual não existe. “Eu olho para que você/ me olhe de volta e nisso consiste/ a relação sexual”, declara o poeta sobre como o homem nu, à sua frente, ali na tela do notebook, o assombra. O que fazer com a força de uma imagem como essa? E mais: como lidar com os fantasmas das imagens que são erguidas para nos excitar em escala massiva, todos nós, voyeurs singulares e anônimos? Essas são algumas das questões que costuram essa declaração de amor (e, em alguns momentos, também de medo) para a potência das imagens contemporâneas, que Campos arquitetou. Ou como escreveu Santiago, falando para o leitor de poesia ‒ e aqui com sua definição ecoando também para o voyeur: “Não custa insistir: quem se exercita na leitura não é o autor (ele já deu o que tinha de dar na concretização do poema), mas o leitor. É este que dá vida à morte”.