“Eu nasci numa fazenda perto do arraial dos Souzas [...].
Meu pai veio vendido de lá do Norte aqui pro Brasil no tempo do cativeiro.
Meu pai nunca deu remédio de médico pra nós, era tudo chá. Ele conhecia todo matinho, o cipó-cruz [...]. Essas coisas tudo é conhecer.
Desde oito anos trabalhei em casa de família, sempre tive que fazer tudo [...].
Sem eu a festa não tinha graça.”
Fragmentos das lembranças de D. Risoleta [nota 1]
Na atmosfera promissora deste início de 2023, quando os movimentos sociais buscam ampliar a força da diversidade de gênero, raça e cultura, a reedição, neste mês, de Memória e sociedade: Lembranças de velhos é notícia de destaque. O livro de Ecléa Bosi (1936-2017; foto), lançado em 1979, vem incluir, em nossas pautas de debates e práticas, a voz potente dos velhos. No texto, tendências político-especulativas dos meados do século XX dialogam com depoimentos de quatro homens e quatro mulheres, com mais de 70 anos, integrantes das classes trabalhadoras e radicados em São Paulo. A voz de D. Risoleta, recortada como epígrafe, faz contraponto com as demais, pela temática predominantemente rural e pelo estilo oralizado, incorporando-se ao grupo como representante da diáspora africana. Se a primeira geração de ítalo-brasileiros põe em evidência a exploração da mão de obra, os afrodescendentes ocupam espaço de opressão ainda mais fundo. Essa coleção de retratos do Brasil, captados pela perícia da professora Bosi, impacta os leitores de ontem e de hoje por sua delicada composição ensaística, onde a fundamentação teórico-epistemológica articula-se com um acervo literário requintado para servir de moldura e contraponto à sabedoria inscrita na gravação das falas dos depoentes idosos. Se, na altura atual do século XXI, uma pesquisa equivalente ampliaria o elenco de vozes – com indígenas, transgêneros e outras pessoas de posição social não normativa ‒, deveria apropriar-se da sensibilidade investigativa da professora emérita da USP e combinar o saber dos cânones científicos e artísticos com as lições argutas dos entrevistados.
A energia guardada no trabalho de Ecléa Bosi resulta tanto do tom empático de suas deduções quanto de sua habilidade de lidar com o gênero narrativo. Preocupada com as relações entre o uso da linguagem e a dimensão temporal, lança mão de sua familiaridade com os pensamentos de Henri Bergson e Walter Benjamin para impregnar-se da potencialidade sensível-intelectual-performática da narrativa e consegue sua maneira atraente de cumprir as exigências acadêmicas e atrair qualquer leitor de autobiografias e romances. Este livro, como os velhos de que trata, alcança vida longa porque rompe, por intuição, a hierarquia dos saberes. Retoma, desenvolve e atualiza o conhecimento bibliográfico com a experiência arguta que encontra nas estórias de vida.
O enfoque da sociedade brasileira pela perspectiva de moradores idosos de São Paulo, numa pesquisa da área da psicologia social, tem a vantagem de mostrar esse panorama em nuances, pois evidencia as diferenças, afinidades e conflitos entre memória individual e memória comunitária. Na parte final do livro, quando se opera o inter-relacionamento dos aspectos principais das oito autobiografias, compõe-se um quadro geral de resultados, no qual os pontos de referência das recordações se encaminham para o destaque de dois tópicos conectados – a “memória política” e a “memória do trabalho”.[nota 2] As diferenças de origem socioeconômica dos memorialistas têm, aí, grande importância, pois incidem na orientação do fio de lembranças de cada um, ora conformando-se, ora confrontando-se uns com os outros.
O conjunto das narrativas de vida oferece uma amostra da formação da sociedade paulista, àquela altura. Os descendentes da primeira geração de imigrantes italianos (representados pelos senhores Amadeu, Ariosto, Antônio e pelo marido de D. Alice), embora lutando com dificuldades, adquiriram conhecimentos suficientes para desenvolverem tarefas artísticas ou industriais, como operários qualificados ou em iniciativas isoladas que se mostraram lucrativas, pelo menos, por certo período. Aqueles que nasceram em famílias tradicionalmente integradas à região (sr. Abel, D. Jovina e D. Brites) contaram com um capital social que lhes permitiu estudar, ainda que em condições precárias, e, assim, fazer carreira em instituições governamentais ou privadas. Por seu lado, os descendentes da diáspora africana (D. Risoleta), vítimas de preconceitos, não puderam explorar sua inteligência e habilidades de modo a atingirem o mínimo de estabilidade financeira. Essas diferenças de status definem o panorama que a investigação constrói. Em paralelo e contrastivamente, no entanto, ainda que com registro diferente de linguagem, as narrativas de vida de todos eles se equiparam e surpreendem, no mesmo nível de vivacidade, drama e humor, capacidade de engendrar cenas e enredos atraentes. A transcrição de suas falas – apoiadas na experiência familiar e comunitária – faz dos oito velhos, objeto da pesquisa, oito narradores clássicos, na plena acepção do termo empregado por Walter Benjamin.
Atenta para a necessidade de distinguir, nas lembranças encadeadas, aquelas ditadas pela “consciência” da situação vivida e as que repetem “estereótipos”,[nota 3] a pesquisadora vai aproximando e distinguindo, uns dos outros, os vários depoimentos. Para o leitor, aí se revela a interdependência entre a “memória política” e a “memória do trabalho” com as origens e circunstâncias da vida dos narradores. Aqueles que, graças à aprendizagem técnica ou ao capital social, conseguiram emprego ou atividade que lhes garantisse alguma estabilidade, puderam mostrar clareza de visão na atividade política e no modo de relatar suas convicções. É o caso do Sr. Amadeu, que foi gravador-estampador numa fábrica durante 55 anos. Aí, na convivência com os companheiros de trabalho especializado, foi-se integrando ao grupo de ativistas do sindicalismo. Com seus companheiros, na luta constante e escapando da repressão, sindicalizou-se, o que lhe possibilitou recursos, modestos mas constantes, para cuidar da saúde e aposentar-se. A relativa tranquilidade alcançada tornou-o um entusiasta do trabalhismo de Getúlio Vargas. Muito menos consistentes, em contraste, são as posições políticas defendidas pelas irmãs, D. Brites e D. Jovina, vindas de linhagem marcadamente florianista, que aplaudiram o tenentismo de 1922 e a Coluna Prestes e, contraditoriamente, alinharam-se aos paulistas conservadores, que resistiram ao governo Vargas em 1932. A propósito, Ecléa Bosi comenta o quebra-cabeças que constituem essas opções políticas contraditórias; embora sempre simpáticas à esquerda e ocupando-se com campanhas beneficentes, tomam o partido dos conservadores quando seu meio social defende interesses locais.
No que diz respeito à rememoração do trabalho, é a dimensão artística das tarefas desempenhadas que tinge de prazer e entusiasmo a descrição de ocupações árduas e repetidas diariamente. D. Alice, que, ainda criança, teve de trabalhar horas intermináveis em ateliês de costura, demonstra alegria ao contar que, depois de viúva, fazia arranjos de flores para vender. A dimensão criativa e artística valoriza as tarefas. O Sr. Ariosto teve uma vida de trabalho incessante e mal-remunerado, mas descreve com saudade o período em que, em parceria com a esposa, fazia flores para as lojas da moda. Até a situação de escravidão em que vivia, trabalhando sem descanso nas casas ricas, é narrada com humor e energia por D. Risoleta. Ela se orgulhava de sua dedicação à limpeza e à cozinha porque empenhava sua habilidade artística nessas atividades. Importa acrescentar que a própria linguagem com que Ecléa Bosi trata este assunto é indicadora da importância decisiva da dimensão criativa das tarefas profissionais. Os tópicos onde analisa as memórias do trabalho distanciam-se do estilo acadêmico e constroem-se como ensaio literário.
Na introdução à sua pesquisa sobre a memória – apresentada como tese de livre-docência à USP –, Ecléa Bosi explica que desenvolveu a atitude mais empática possível para entrevistar os velhos, cujos depoimentos transcreveu e analisou. Seu gesto foi de incluí-los novamente no trabalho de construção comunitária da cultura do país. Mais ou menos no mesmo período, o médico Pedro Nava (1903-1984) fechava seu consultório e lançava-se no trabalho de resgatar a experiência de sua geração, nascida na abertura do século XX. Em 1972, com a publicação de Baú de ossos, sua habilidade narrativa surpreendeu os leitores. Seguiram-se mais cinco volumes de reinvenção da vida familiar e pessoal, num estilo atraente que combinava o vanguardismo de 1922 com a midiatização pós-moderna da cultura. Enquanto a professora Bosi analisava a energia de seus entrevistados ao reconstituírem suas atividades da juventude e madureza, Nava reunia o legado literário em sua potência rememorativa.
Também contemporaneamente às “lembranças de velhos” e às memórias de Nava, surgiu outro trabalho surpreendente de grafar o saber oral da ancestralidade – Carolina Maria de Jesus (1914-1977), desdobrando sua carreira de escritora, registrou suas memórias, num volume de trajetória editorial ainda truncada, Diário de Bitita.[nota 4] Aí, se registram as artimanhas da menina que começava a se defender da segregação, guiada pela sabedoria do avô ex-escravizado. Com a alegria enérgica de D. Risoleta, Carolina brigou muito para fazer circular sua escrita e, assim, abriu caminho para a divulgação da memória de outros excluídos.
NOTAS
[nota 1]. As citações deste texto foram extraídas da edição anterior de Memória e sociedade: Lembranças de velhos. (São Paulo: Companhia das Letras, 1994; 3ª ed.). Os trechos da epígrafe estão nas páginas 363, 364, 371 e 379.
[nota 2]. O assunto é abordado nas páginas 453 – 481 da edição citada na nota anterior.
[nota 3]. Termos empregados no título de um capítulo da parte 4 da obra: A memória entre a consciência e o estereótipo.
[nota 4]. A única edição deste livro que circula (Nova Fronteira, 1986) é a tradução da versão francesa, embora não traga esta indicação.