Resenha Púchkin janeiro.23

 


A obra de um “pai fundador” não poderia estar em mãos melhores do que as de outro “pai fundador”. Não há exagero em cravar que Púchkin (1799-1837; imagem) é o Boris Schnaiderman (1917-2016) da literatura russa. Muito menos em afirmar que Boris Schnaiderman é o Púchkin da tradução de literatura russa no Brasil. Dito isso, a tradução de Boris Schnaiderman para A filha do capitão, de Púchkin, lançada pela Editora 34, é uma preciosidade destinada a ornar as estantes e cabeceiras de quem estiver disposto a se entregar a uma leitura das mais prazerosas.

A tradição crítica dos estudos de literatura da Rússia, seja naquele país, seja no exterior, por vezes parece uma gincana para ver quem mais louva a figura de Aleksandr Serguêievitch Púchkin. Alcunhado de “sol da poesia russa” por Odóievski, sintetizado na fórmula “nosso tudo” por Apollon Grigóriev, Púchkin é, nas palavras de Isaiah Berlin, “a figura divina para a qual todos os escritores russos rezam, da qual todos procedem, e cuja autoridade nenhuma rebelião [contrária] jamais teve sucesso”. Ou, na definição de Boris Schnaiderman, “um verdadeiro turbilhão que passou pela vida literária russa, com a clareza e fulgor de sua obra, suas guerras e duelos, um turbilhão que viveu tão pouco, mas imprimiu sua marca em tudo o que se faria depois na Rússia em poesia e literatura”.

Daí o leitor ocidental, para o qual as “torres gêmeas” que dominam a literatura russa são Tolstói e Dostoiévski, pergunta-se: mas será que esse “nosso tudo” é isso tudo? Afinal, fora da Rússia a recepção de Púchkin nem se compara à sua estatura no país, onde ele é não apenas o maior escritor, como o ícone cultural de maior destaque.

Por uma ironia amarga, foi na época dos mais sangrentos crimes de Stálin (o sombrio ano de 1937, que, além de expurgos na URSS, marcava também o centenário de falecimento do poeta) que começou o processo de massificação de Púchkin. Suas obras foram editadas em larguíssima escala, seu nome passou a batizar cidades, logradouros e museus, e a efígie deste bisneto de africanos apareceu por toda parte. Denunciou-se o stalinismo, extinguiu-se o comunismo, mas o autor – que não tinha nada a ver com os desmandos dos que divulgaram seu nome – continuou a ser ensinado nas escolas e sabido de cor por todos os russos. A poesia de Púchkin é o substrato da língua russa, assim como a música popular é o substrato do português falado no Brasil. Toda literatura russa posterior a ele provém do idioma puchkiniano e, por isso, não é exagero considerá-lo uma espécie de “pai fundador”, da importância de um Shakespeare para os ingleses ou de Goethe para os alemães.

Não aprendemos sobre Púchkin na escola, não sabemos seus versos de cor; se entre nós ele jamais poderia ter a mesma relevância que na Rússia, por que, por outro lado, sua difusão por aqui é tão menor do que a dos “pais fundadores” de outras literaturas estrangeiras? O descompasso chama ainda mais a atenção devida à forte presença da literatura russa no Brasil.

Talvez a explicação mais óbvia resida no fato de que ele foi sobretudo um poeta – e a principal lacuna da literatura russa no Brasil ainda é a poesia, sobretudo devido às dificuldades de tradução. Nas palavras do eslavista francês Georges Nivat, “nada mais difícil de traduzir que uma poesia de Púchkin que não comporta metáfora alguma e parece deslizar no cristal da língua russa”. Mais influente crítico russo do século XIX, Vissarion Bielínski (1811-1848) declarava, em 1846, que “nem Púchkin, nem [o poeta e pintor Mikhail] Lérmontov poderiam deixar de perder com as traduções, por mais bem traduzidas que fossem suas obras. O motivo é evidente: ainda que a alma russa seja visível nas criações de Púchkin e Lérmontov, a mente russa positiva e clara, a força e a profundidade de sentimento, qualidades assim são mais visíveis para nós russos que para os estrangeiros, porque a nacionalidade russa ainda não foi elaborada e desenvolvida o suficiente para que o poeta russo possa imprimir em sua obra o selo nítido dele e expressar as ideias humanas gerais”.

Para o leitor brasileiro, a afirmação de Bielínski pode hoje soar exagerada e anacrônica. Afinal, o autor não podia prever que, em 1917, nasceria na cidade ucraniana de Úman o mediador ideal entre as culturas russa e brasileira: Boris Schnaiderman.

Boris veio ao Brasil com os pais, aos oito anos de idade. Assim, se tinha o idioma russo como natural e familiar, manejava também o português com destreza de nativo. Bilíngue, bicultural, lutou com a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, teve uma atuação destacada na imprensa brasileira e, mesmo sem ter cursado Letras (era engenheiro agrônomo), foi o criador do curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo, em 1960. Não é exagero dizer que toda a escola moderna de tradução de literatura russa diretamente do idioma original (saltando o intermediário francês, que predominou por quase um século) é discípula de Schnaiderman: mesmo quem não foi seu aluno acabou tendo suas escolhas moldadas e condicionadas pela linha meticulosa que marcou os trabalhos deste eterno professor.

Embora o estereótipo do romance russo seja um cartapácio de centenas de páginas, a atuação de Boris como tradutor centrou-se essencialmente na poesia (em parceria com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, e também com Nelson Ascher) e nas novelas breves. Isso porque ele era um ourives minucioso e detalhista, que passava décadas a burilar e retrabalhar suas traduções.

Esse perfeccionismo faz de cada trabalho de Boris um item precioso e incontornável, e o transforma no intérprete ideal de um autor límpido e despojado como Púchkin. Não por acaso, venceu o Prêmio Jabuti justamente com um volume puchkiniano – o melhor que existe em português do Brasil: A dama de espadas: Prosa e poemas, também lançado pela Editora 34.


A OBRA

A tradução de Schnaiderman para A filha do capitão saíra em 1949, pela editora Vecchi, quando ele ainda se escondia (mesmo que de forma não muito discreta) sob o pseudônimo de Boris Solomonov. Preparada com o apuro que caracteriza as publicações da Editora 34, a edição atual traz variantes do texto original, um prefácio de Otto Maria Carpeaux e dois capítulos da História de Pugatchóv (1834), ensaio de Púchkin a respeito do período histórico que ele aborda na novela, em tradução de uma estrela ascendente da russística nacional, Danilo Hora.

Tudo isso faz diferença, mas o que dá real sabor à leitura é o apurado bom gosto e senso de estilo de Schnaiderman, a nos guiar com elegância, riqueza vocabular e imaginação pela prosa mozartiana de Púchkin. Pois se mesmo o romance Ievguêni Oniéguin (1833) ‒ obra-prima do escritor que o crítico literário francês Melchior de Vogüé apelidou de “Pedro, o Grande, das letras”‒ foi, na verdade, redigido em versos, no fim de sua breve existência Púchkin foi, contudo, ficando cada vez mais atraído pela prosa, criando preciosidades como os Contos do falecido Ivan Pietróvitch Biélkin (1831), a empolgante novela A dama de espadas (1834), e A filha do capitão (1836).

Descreve Nikolai Gógol em 1847: “A ideia de um romance que narraria uma história simples, sem artifícios, da autêntica vida russa ocupou-o insistentemente nos últimos tempos. Ele largou os versos unicamente para não se deixar levar por nada ao redor e ser mais simples nas descrições. Simplificou a própria prosa a um ponto de não encontrar qualidades sequer em suas primeiras novelas. Púchkin ficou contente com isso e escreveu A filha do capitão, decididamente a melhor produção russa do gênero narrativo. Comparados a A filha do capitão, todos nossos romances e novelas parecem uma papa melosa. A pureza e a falta de artifícios elevaram-se nela a um grau tão alto que, diante dela, a própria realidade parece artificial e caricatural”.

Um dos modelos literários de Púchkin era Nikolai Karamzin (1766-1826), que não apenas escreveu ficção como, sobretudo, redigiu uma monumental História do Estado Russo em 12 volumes, baseada em pesquisa maciça de arquivos e de fontes primárias. Púchkin não apenas serviu-se do manejo estilístico de seu antecessor, como encontrou em sua obra fonte de inspiração: basta lembrar, por exemplo, da peça histórica de laivos shakespearianos Boris Godunov – que, a exemplo de A filha do capitão, narra a tentativa de ascensão ao trono russo de um impostor que reivindica ser um tsar assassinado (e mais tarde daria origem à célebre ópera homônima de M. Mússorgski que estreou em 1874).

Púchkin tinha a intenção de escrever um tomo histórico sobre Pedro, o Grande ‒ o volume não saiu, mas o período deste monarca é tratado em O negro de Pedro, o Grande, novela inacabada sobre Aníbal, bisavô do escritor, nascido na Etiópia e criado na corte do célebre tsar; abordou o reinado de Catarina, a Grande, em A dama de espadas; e, ao pesquisar o governo dessa tsarina, acabou concentrando-se na rebelião camponesa liderada pelo cossaco Pugatchóv (1742-1775), ocorrida nos anos 1770 e objeto tanto do ensaio História de Pugatchóv quanto de A filha do capitão.

Embora condene explicitamente a revolta e seu líder, e louve o “despotismo esclarecido” de Catarina, Púchkin está longe de ser maniqueísta. Grinióv, o narrador em primeira pessoa, é um aristocrata, porém a idílica família do capitão por cuja filha ele se apaixona é de origem humilde; Pugatchóv, que deveria ser o vilão, tem sua crueldade e impostura temperadas por episódios de sagacidade, magnanimidade e benevolência, e a figura realmente maligna da trama é Schwabrin, o aristocrata rival de Grinióv na luta pelo coração da filha do capitão.

Além disso, Savélitch, criado de Grinióv, já parece prefigurar Platon Karatáiev, que será a encarnação da espontaneidade e sabedoria popular em Guerra e paz (1869), de Tolstói. Talvez não seja despropositado considerar que todas as sofisticadas tensões entre História e ficção, vida privada e acontecimentos públicos, camadas privilegiadas e despossuídas que fariam a glória do caudaloso romance de Tolstói brotam, em alguma medida, da feliz combinação destes elementos em A filha do capitão. Pois, na literatura russa, tudo remete a Púchkin.