pan dyonelio machado por eneida serrano foto eneida serrado

Dyonelio Machado (1895-1985) era um autor elogiado por Guimarães Rosa, que situou o seu O louco do cati como um dos dez melhores romances brasileiros. Rosa morreu em 1967, então tal lista não é estendida a todo o século, mas apenas ao horizonte de expectativas do celebrado autor mineiro. Se começo este texto sobre Os ratos, que Machado lançou em 1935 e foi relançado pela Todavia, é para sinalizar sua reconhecida competência como trabalhador da linguagem - um elogio de Rosa não é pouca coisa, apesar de não encerrar nenhum tipo de debate estético - e poder passar a um outro aspecto: o de certas estratégias de leitura do livro republicado.

Romance urbano, Os ratos aborda o drama financeiro e psíquico de um trabalhador que não consegue pagar a dívida com um leiteiro, um anti-herói que tem um dia para poder arrumar a quantia necessária e sofre uma série de negativas. Tudo se dá em um ambiente urbano, o de Porto Alegre, em meio às modernizações a que foi lançado o Brasil nos anos 1930 - lembremos que a estrutura do Estado brasileiro passa por reformas importantes, com ressonâncias até hoje, durante a Era Vargas. O que se costuma chamar de “romance de 1930” também pode ser entendido como uma reunião de críticas a essa modernização, ainda que não se resuma a isso.

No Brasil atual, as filas de pessoas à espera de restos de comida são um dado que nos aproxima de Os ratos, um livro que se vale de um registro de linguagem mais comum na época de sua primeira edição. Também o aproxima de nós a capa do livro, um quadrinho que tanto respeita a antiguidade do texto quanto o enverniza para sua nova circulação (a Todavia fez algo parecido com O bom crioulo, de Adolfo Caminha).

A questão talvez seja a omissão, no posfácio ao livro, assinado pelo crítico Davi Arrigucci Jr. (USP), de um dado importante - Machado foi filiado ao Partido Comunista. O comunismo norteou autorias nos anos 1930 e, como nos provam o autor em questão e Graciliano Ramos, sem que isso resultasse em adoção da diretriz estéticas preconizadas pelo stalinismo, o “realismo socialista”. O dado comunista colocaria em jogo, por exemplo, o sofrimento do protagonista com a solidão não apenas como nostalgia da socialização rural, mas também como fragilidade crescente da solidariedade. A modernização mudando, ou na iminência de mudar, as relações entre as pessoas - não é disso, mas sob outra forma, que Guimarães Rosa (que não era comunista e cuja obra é posterior) preservaria as culturas do Sertão?

O dado comunista não empareda a narrativa pois, com Arrigucci, lembramos que, sem recair no naturalismo e apontando para estratégias de escritores russos (que circulavam bem no país até 1936, sendo depois censurados), Machado expõe como social e psicológico são uma dobra por meio da qual flagramos questões de tempos opressores, por sua circularidade: pensa-se em saídas para os problemas que, pouco depois, são frustradas; volta-se à angústia. Mesmo a saída para a dívida é um paliativo: para o leitor, fica a reflexão de que o sono não encerra o problema de se sustentar, o dia seguinte aguarda e, talvez com ele, a angústia e a fantasia ratas que corroem como os olhares dirigidos ao protagonista, que apontam a desumanização.