DouglasLaurindo WEB

Em julho de 2022, o deputado bolsonarista Daniel Silveira, que nunca fez nada pela literatura do país, recebeu a medalha da Ordem do Mérito do Livro da Biblioteca Nacional. Críticos literários, a mídia e a esquerda liberais pouco focaram suas falas no fato de Silveira não ser sequer um mau escritor (e o parlamentar nem é o único caso de pessoa não escritora a ganhar esse tipo de honraria: a ABL, por exemplo, seguindo a academia francesa, chama tais premiados de “notáveis”). O maior problema, segundo críticos, era o fato de Silveira não ter curso superior e, pecado pior, ser “marombeiro”. Fiquei intrigadíssima: para muita gente, o problema não é Silveira ter sido condenado pelo STF a oito anos e nove meses de reclusão, por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo: era o fato de o corpo dele não fazer jus àquele que um “imortal” deve ter.

Eu não vou perder meu tempo comentando esse negócio do homem não ter curso superior, porque já sabemos que criatividade não tem absolutamente nada a ver com diploma. O que me interessa é a falsa polêmica da maromba (como se o tipo de corpo que alguém tem comprovasse inaptidão para receber uma honraria de cunho acadêmico), porque ela diz muito sobre a forma como a assim chamada “intelectualidade” lida com a materialidade humana.

O livro de estreia do poeta amazonense Douglas Laurindo, O limiar das fendas, (Urutau, 2022) traz um xarope para essa aversão. Colocando o corpo, o deboche e a transcendência viada no centro de sua poesia, Laurindo insere seu texto num barroco de boate, com uma musicalidade em 140 BPM típicas do trap: uma práxis poética que é o contrário de Daniel Silveira, mas é também um elixir para um certo esnobismo anticorpo.

No poema jogo perigoso, o poeta diz: “não há reboco de caravela/ que impeça/ a expansão do corpo” que é, segundo Laurindo, “querido por nós mesmos”. No entanto, círculos acadêmicos são bastante alérgicos à ideia básica de que o sujeito que escreve tem não somente um intelecto, mas também ossos, pernas, pés, unhas ‒ uma matéria humana, enfim. Muitas vezes, escritores são tratados como se não pudessem ter matéria, pois isso colocaria em risco a qualidade da produção intelectual (risos)! Nessa lógica, ele não pode ser gordo, nem magro; não pode ser uma pessoa com deficiência, não pode ter plástica, não pode ser piriguete; não pode ser enfeitado, nem anoréxico, nem atlético. Enfim: não pode nada. Forma estranha de capacitismo, essa esnobe postura relega o escritor a uma figura adoecida e irrelevante, isolada em seu gabinete, pensando na vida em vez de vivê-la (e transformá-la), com o corpo que tenha, seja ele “ideal” ou não.

A luta por acesso à alfabetização e à leitura, mas também à saúde pública e ao desporto, é uma luta emancipatória – e por isso mesmo esse saudosismo do intelectual tuberculoso do século XIX, que relega a matéria em nome da superioridade do pensamento, deve ser ultrapassado. Esta é uma nostalgia eurocêntrica e antiproletária, que não deveria ter lugar na nossa produção literária, aqui, onde estamos, nas margens do capitalismo. Pensando em outros poetas latino-americanos com quem Laurindo dialoga, e livro de dele me lembra muito a obra de Pedro Lemebel (1952- -2015), e conversa também com Genealogia das mulas (Peirópolis, 2022), de Marília Floôr Kosby. Os três poetas partem da materialidade do corpo, e do contexto onde ele se encontra, para apontar formas refrescantes de ver e de estar na poesia. Laurindo e Kosby fazem isso literalmente de polos opostos – ele, do Amazonas, e ela, nas palavras da própria, do “extremoso, extremíssimo sul extremo”. Se o barroco dele é o da boate e, o dela é o do estábulo.

O limiar das fendas mistura a mitologia das dancinhas de TikTok com Drummond, coloca Adília Lopes pra dançar um tecnobrega, e joga com tradições poéticas ainda mais antigas – mas sem esquecer da vida interna, da agonia de existir, da vida nas ruas de Manaus. Pois, como o próprio poeta diz, no poema que abre o livro: “ser iconoclasta sem,/ no entanto,/ esquecer-se das origens.”