Tenho me convencido de que presenciamos o esgotamento parcial, talvez total, do modo pelo qual temos contado a história da literatura brasileira. Esta historiografia posiciona identidade nacional, cultura letrada e modernismo como pilares absolutos da nossa formação literária. A partir destes pilares, também são estabelecidos os valores predominantes pelos quais crítica literária, historiografia e universidade hierarquizam a nossa literatura. Porém, nos últimos anos, temos buscado contar outra história. Ela não quer anular a leitura dos autores já canônicos, o que seria uma ingenuidade, mas, sim, entender a ideia de “literatura brasileira” com maior diversidade. Desta maneira, nossa história literária tem se tornado mais feminina, queer, negra, indígena e oralizada. É o caso do resgate da obra da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), cuja redescoberta tem ajudado, por exemplo, a sacudir a história do romance no século XIX brasileiro. Não por acaso, Maria Firmina foi celebrada no palco da Flip 2022 como autora homenageada do evento.
Tênebra: Narrativas brasileiras de horror [1839-1899], ótima antologia publicada pela editora Fósforo e organizada por Júlio França (acima à esquerda) e Oscar Nestarez, é outro momento importante deste atual repensar dos sentidos e da formação da nossa literatura. Embora o debate identitário, no caso de Tênebra, saia do palco principal, isto não significa que o questionamento proporcionado pela antologia não seja igualmente disruptivo. França & Nestarez não são nomes estranhos ao debate provocado pela antologia que organizaram. O primeiro é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e um dos maiores especialistas brasileiros no campo de pesquisa do gótico e do insólito. Já Nestarez é uma das principais vozes da estética do horror na literatura contemporânea brasileira, assim como um pesquisador experiente na área, tendo defendido há pouco tempo uma tese na Universidade de São Paulo sobre o horror na literatura brasileira. Com Tênebra, seus organizadores nos lembram de mais uma face apagada da nossa literatura, aquela que se dedicou a narrar o medo, o sombrio e o assombro. Entendendo o gótico como pilar essencial do conto insólito no Brasil do século XIX, Tênebra abre a caixa de Pandora: a literatura brasileira tem, sim, contos fantásticos, insólitos e de horror.
Além de ser uma leitura deliciosa, ou melhor, terrivelmente deliciosa, Tênebra demonstra o quanto o medo, o assombro, o sobrenatural, o horror e o negativo não são um desvio de rota da nossa literatura, ou uma excentricidade a ser olhada com complacência, mas uma de suas características recorrentes. Olavo Bilac, Aluísio Azevedo, Bernardo Guimarães, Fagundes Varela, Cruz e Sousa, Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo: estes clássicos da nossa literatura, todos compilados na antologia, caminharam pelo horror e pelos Vales da Sombra e da Morte da criatividade literária. Alguns destes nomes, aliás, imobilizados nas páginas dos livros didáticos das escolas, serão reencontrados por leitoras e leitores nesta posição inusitada, nova, de criadores tenebrosos. A eles se juntam autorias-quase-fantasmas, vozes que, silentes por décadas, retornam para nos assombrar com seus assassinatos, maldições, seres fantásticos. É o caso, por exemplo, dos contos escritos por autoras como Corina Coaracy, Maria Benedita Bormann e de outra autora recém-resgatada, Júlia Lopes de Almeida. É dela um dos contos mais impactantes do conjunto, A nevrose da cor: Fantasia egípcia. Narrativa de uma mulher-vampira que vive em um Antigo Egito cuja reconstituição histórica lembra filmes antigos com cenário de papelão, Júlia Lopes de Almeida criou uma história perturbadora que mistura orientalismo cafona com a urgência de um desejo, vivido pela protagonista da história, que transforma o sexo em sede de sangue. Embora os contos insólitos de Júlia tenham sido recentemente republicados, seu nome é ainda associado ao realismo de seu romance A falência, o que vai surpreender muitos que se dispuserem a ler seu conto em Tênebra.
Quando me refiro a “cafona”, não o faço em termos automaticamente negativos. Tênebra celebra o exagero das sensações, o folhetinesco, o extremado e isso é bom. Considero que a antologia ajudará a implodir dois mitos estéticos que continuam a nos fazer mal: a suposta necessidade, por parte de nossa ficção, de realismo; a associação da ideia de criação literária a noções de “equilíbrio” e de “bom gosto”. O realismo, em todas as suas vertentes, é objeto de fascínio e isso não é em si o problema: a sua condição como pré-requisito de qualidade literária é que deve passar por questionamento. Com a ânsia de encontrar na literatura um instrumento de intervenção salvadora da realidade, ou uma forma de compensar a nossa miséria, temos muitas vezes aprisionado as potencialidades da imaginação criativa e desenvolvido uma visão prescritiva, limitadora, da liberdade de criar e contar histórias. O modo explícito com o qual os contos de Tênebra manipulam a violência, em alguns casos, certamente foi um dos motivos para condenação dos contos e das suas autorias. Sem olhos, conto menos conhecido de Machado de Assis e que Tênebra compilou, é um exemplo interessante, no qual uma cena aterrorizante no fim da narrativa poucas vezes é encontrada, nessa voltagem violenta, na própria obra de Machado. Não por acaso, quantas vezes lemos Sem olhos, ou lemos análises a seu respeito?
Destaco, por fim, outro bem-vindo incômodo trazido por Tênebra: vários contos negam a necessidade de representar a cor local, ou os usos e costumes da nossa “brasilidade”. E quando o Brasil aparece, o solo pátrio é impregnado de uma estranheza inescapável, nos lembrando da orfandade contida na ilusão de pertencimento que qualquer patriotismo nos promete. Por todos estes motivos, a publicação de Tênebra pode ser celebrada como um dos excelentes lançamentos de 2022. Que venha agora um segundo volume, sobre o século XX, tempo que foi inspiração para tantos outros terrores e delírios.