“Liliana é o nome que dei à minha liberdade”, diz Ana Ocadiz, grande amiga de Liliana Rivera Garza, em um de seus testemunhos ao livro O invencível verão de Liliana, lançado em português neste ano de 2022 pela Autêntica Contemporânea, com tradução de Silvia Massimini Felix.
Com base em relatos de amigos e em um arquivo de cartas, manuscritos, projetos arquitetônicos, cadernos escolares e diários que pertenceram à irmã, intactos há mais de 30 anos, a escritora, pesquisadora e docente mexicana, Cristina Rivera Garza, conta ao mundo quem foi Liliana. Por meio de testemunhos apaixonados da turma de amigos da faculdade de arquitetura da UAM (Universidade Autônoma do México) e de cartas emocionantes trocadas entre Liliana e seus familiares e amigos, incluindo a própria autora do livro, entra-se lentamente no espaço de gramados, edifícios universitários e na casa em que a estudante de arquitetura viveu de maneira honesta (qualidade que ela mesma destaca muitas vezes em suas anotações) e intensa. Caminha-se também a passos largos pela Cidade do México, seus cinemas, suas avenidas, suas estações de metrô lotadas.
Os escritos da estudante apaixonada, dedicada, irreverente e criativa transbordam, dando a conhecer uma amiga que amava intensamente os seus e oferecia-lhes generosamente considerações filosóficas assertivas e bom humor, tornando-se uma líder natural da turma logo no começo do período universitário. Além disso, Liliana oferecia com prazer a própria casa, que era um animado ponto de encontro, abrigo de longas conversas e de intensas experiências afetivas. O maior amor da jovem inteligente e elétrica era a liberdade.
Sua liberdade torna-se, porém, insuportável para uma anquilosada ordem patriarcal no México do fim dos anos 1980 e, no dia 16 de julho de 1990, aos 20 anos de idade, Liliana é vítima de um feminicídio cometido pelo ex-namorado, Ángel González Ramos, um homem que não havia conseguido entrar na universidade e estava mergulhado em ressentimento e ciúme desde que Liliana se mudara de Tampico, onde morou na época do colégio e onde o conheceu, para a capital.
Três décadas depois da perda responsável por um luto infinito, Cristina Rivera Garza decide reabrir o processo judicial, indo dos Estados Unidos, onde mora, até a Cidade do México, em busca dos arquivos físicos do processo. Ali, é lançada ao labirinto da burocracia e da negligência oferecida pelo Estado mexicano, principalmente em casos de violência contra mulheres. Não por acaso, o feminicida jamais foi encontrado.
À época, embora o conceito de feminicídio existisse (foi cunhado pela escritora e ativista feminista sul-africana Diana E. H. Russell em 1976), não era utilizado judicialmente. Usava-se o termo crime passional — um nome que quase justifica o assassinato —, assim como foram amplamente empregadas teses de “legítima defesa da honra” como excludente da ilicitude e de “violenta emoção”, como circunstância especial de diminuição de pena de feminicidas. Em outras palavras, há toda uma gramática — jurídica e não jurídica — forjada para proteger e incentivar homens que violentam e matam mulheres.
Em La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez (2013), Rita Segato expõe sua interpretação sobre os enigmáticos crimes contra mulheres que assolaram reiteradamente, por mais de 11 anos, Ciudad Juárez (cidade mexicana do Estado de Chihuahua, na fronteira com os Estados Unidos). Tal interpretação do texto social era uma maneira de se contrapor ao domínio narrativo por parte de jornais policiais, que noticiavam os “crimes passionais” de forma rotineira. Conforme afirma nesse estudo, a realidade social e financeira da América Latina é marcada por um funcionamento de dupla natureza, a do visível e a do invisível. O visível se daria em torno de regulações explícitas, da normativa legal, das organizações de opinião pública e da dinâmica da produção e circulação da riqueza. O invisível acaba sendo a parte mais complexa, porque é formado pelas constantes exceções às regras, com toda a permissão do Estado, o que faz que a interpretação dependa de uma leitura dos signos, não prontamente decifráveis. Para além da violência instrumental, cuja finalidade é explícita, Segato chama de “violência expressiva” aquela que produz regras implícitas, por meio das quais se criam atribuições de poder que determinam a circulação dos corpos. Regras invisíveis, mas extremamente eficazes.
É nesse sentido que o livro de Cristina Rivera Garza atinge um perfeito encontro do narrar literário com a invenção e a aquisição de uma linguagem para o que aconteceu com Liliana. Foram necessários 30 anos para que existissem as palavras que compõem este livro. O mesmo silêncio que impediu Liliana de falar com seus familiares e amigos sobre as violências que sofria, e que culminaram em sua morte precoce, também impediu a família de ter um luto digno, de pronunciar que a vítima não era culpada diante das narrativas dos jornais da época. São silêncios cheios de linguagem, que ecoam a gramática da violência expressiva, nas palavras de Rita Segato.
O livro é um produto precioso, que oferece em três dimensões (como Liliana, sendo arquiteta, gostaria) uma história que não poderia ser planificada. Uma história de duas mulheres, uma delas cujo caminho foi atravessado por um feminicida e outra cujo caminho foi andar pelos anos, corajosamente, catando linguagem para devolver a Liliana mais do que sua tragédia, sua vida luminosa. Sai-se com a impressão de que ela é uma amiga que acaba de nos fazer uma visita solar.
Logo no começo do livro, Garza descreve um protesto feito em 16 de agosto de 2019 por um “pelotão de feministas furiosas” por causa do estupro de uma adolescente perpetrado por policiais dentro de uma viatura, como a continuidade do que foi a vida de Liliana nas feministas de hoje e de todos os tempos.
Fernanda Barreto, artista plástica brasileira, radicada no México estava presente e narra o evento da seguinte forma:
“Não existia uma rota traçada. Não existia ponto A, nem ponto B. O que movia aquele corpo coletivo era a fúria, e a fúria, também como estratégia, confundia. Demos voltas e voltas pela Glorieta, o movimento circular era iterativo, mas sempre um pouco modificado. Nunca voltávamos pro ponto onde havíamos começado, porque talvez nunca existiu começo e aquela noite, pra muitas de nós, nunca terminou. Os muros deixavam de ser muros, as portas de vidro já não eram uma barreira para dividir espaços, o ponto do metrobus ardia em chamas. Fuimos todas! La policia no me cuida, me cuidan mis amigas!, escutava-se em coro. Fizemos dessa circunferência uma zona temporalmente autônoma. Nos sentíamos acompanhadas e desbordadas. O monumento [Anjo da Independência] amanheceu com um rastro da memória de um furacão que não pode se deter e se ergueu como mensageiro vivo dos gritos que denunciam a violência contra as mulheres em um México feminicida.”
O nosso invencível verão no meio de um inverno que há de ter fim.