María Negroni crédito.Federica Rocco

 

Para explicar a razão de gostar de um texto literário, é necessário também a leitura de si. Por que aquele livro/ensaio/ artigo “me pegou”? A mim e não a outro? O que existe em mim que se move na direção daquele texto, mesmo que não seja pela via da identificação? Para formular essa resposta, geralmente, há uma espécie de cotejo criativo entre as próprias premissas, referências, leituras (o livro que eu sou) e o que leio. É nessa direção que María Negroni, escritora, poeta, ensaísta argentina, nos brinda com o livro A arte do erro, que chega ao Brasil neste ano de 2022 traduzido por Ayelén Medail e Diogo Cardoso pela editora 100/cabeças.

Trata-se de uma coletânea de ensaios, um compêndio de comentários sobre escritores e artistas que a atraem, um “mapa” de suas inspirações literárias. A linha que guia esses ensaios é a sobrevivência do erro, da dissidência, tanto em autores mais conhecidos do grande público leitor quanto de nomes que ficaram marginais até o momento. O gênero ensaístico também nasceu e vive sob o signo da minoridade, de uma modéstia inerente, ao não postular verdades, mas contentar-se com se apresentar como uma perspectiva singular. O amor ao erro e o que dele pode sair, o que “faz sentido depois”, em uma equação que conta com a variável do estranhamento do tempo: uma aposta de contornos lacanianos no tropeço.

No prefácio, Negroni diz que o papel da escrita literária deve ser invariavelmente rebelar-se contra o automatismo e as petrificações do discurso. “Desse modo e não de outro, produz estampas de desacomodação. Digamos que, em sua construção dubitativa, traça um atlas fugaz e convida o leitor a perder-se, como um amante sem certezas...”. Errar é desistir do caminho único, da certeza e mesmo da verdade. É perder-se. O amante errante assume estar sempre em movimento, é da sua natureza ser digressivo, subverter o método.[nota1]

Anne Carson, em seu Ensaio sobre o que mais penso,[nota2] híbrido de poema e ensaio, compromete-se com a absoluta importância do erro, como um evento mental interessante e útil para a existência da poesia. Recuperando a ideia aristotélica de retórica, que divide as palavras entre estranhas, vulgares e metafóricas (as primeiras nos confundem, as vulgares falam do que já sabemos e as últimas nos levam a alcançar algo novo e revigorante), narra o momento em que o erro, o tropeço, transformam-se no alimento do movimento e, consequentemente, da vida: “[...]/ Aristóteles diz que a metáfora torna a mente consciente de si mesma// no momento de cometer um erro./ Ele imagina a mente a mover-se através de uma superfície lisa/ de linguagem vulgar/ quando de repente/ a superfície quebra-se e complica-se./ Surge o inesperado.”

Pensar na metáfora como um exercício de errar faz Negroni abrir seu livro com um curto e intenso ensaio sobre Rimbaud, o peregrino no deserto, e as múltiplas camadas de sua expressão “como uma fome por baixo da fome”. A poesia penetra nesses ensaios de palavras densas, testando os limites dos gêneros textuais e tensionando distinções do uso da linguagem entre poesia e ensaio, assim como o ensaio-poema de Anne Carson. Também chamou a atenção dos tradutores Diogo Cardoso e Ayelén Medail (ela também traduziu História do leite, de Mónica Ojeda, da Editora Jabuticaba, e Saboroso cadáver, da Agustina Bazterrica, publicado pela Editora DarkSide) o uso de palavras inusitadas, mesmo para nativos argentinos, e a extensão curta dos ensaios: “ficamos impressionados com o poder de síntese dela. Em textos muito curtos, ela aborda artistas e obras de um modo profundo com uma agilidade absurda!”, relatou Diogo em um bate-papo virtual.

Celebrando em Benjamin a atração pelo desvio, pela falta, Negroni diz no ensaio A enciclopédia mágica de Walter Benjamin presente neste livro: “Fiel às coisas que, em sua materialidade, constituem sempre um protesto contra o convencional, Benjamin priorizou não seu valor utilitário, mas a cena em que estas encontram seu destino”, evidenciando o papel do tempo no mistério do improvável-desejável.

Aborda ainda a obra de Xul Solar (1887-1963), com seus idiomas, seres e mundos inventados, os “idiomas sem povo”; os sepulcros animados da linguagem ilusionista de Étienne-Gaspard Robert (1763-1837); o espírito marginal e bem-humorado de Emily Dickinson (1830-1886), “com a ressalva de lembrar que a poeta nunca abandona a mais estrita irregularidade métrica, tonal e léxica, consciente, sem dúvida, de que o dissonante compromete a convenção e constitui a melhor garantia de que o poema ‘viva e respire’”, além de outros conhecidos e desconhecidos autores, com destaque para os poemas de H. A. Murena (1923-1975), e um belo ensaio sobre a atividade de traduzir, que faz lembrar a leitura que Gayatri Spivak faz da analogia de Melanie Klein entre tradução e a decodificação do mundo por parte do bebê: “é um movimento de vaivém, um translado incessante que é uma ‘vida’”.[nota3]

Negroni tem emergido como uma das maiores escritoras latino-americanas de nosso tempo. Além do livro aqui apresentado, publicou entre outros: Arte y fuga, Cantar la nada, Elegía Joseph Cornell, Interludio en Berlín, Exilium, Objeto Satie e Archivo Dickinson (todos de poesia); Ciudad gótica, Museo negro, El testigo lúcido, Galería fantástica, Pequeño mundo ilustrado (ensaio); El sueño de Úrsula e La anunciación (ficção), ainda inéditos no Brasil. Recebeu importantes prêmios nos últimos anos (a contradição também faz parte da porosidade por onde se borram fronteiras).

Sobre A arte do erro, importa dialogar com sua natureza digressiva em um mundo que perdeu seu sentido último; ver vacilar a diferença entre “leituras corretas” e “leituras erradas”, nas palavras de Silvina Rodrigues Lopes em Literatura, defesa do atrito, “e que o segredo ou o vazio que suspende a apropriação ou uso deste tipo de texto (a que chamamos literatura), é uma força ativa, desencadeadora do sentir-pensar”, ampliando, assim, o significado do erro em uma literatura que não é oposta à vida, não serve para redimi-la. Não serve para nada. Feliz momento de chegada da tradução que permite às brasileiras e aos brasileiros ler María Negroni e desviar na direção dos erros de Eros.

 

NOTAS

[nota 1]. Em alemão, a palavra weg significa, ao mesmo tempo, “método” e “caminho”. Sobre isso, ver mais no texto Pensar por constelações, de Rita Velloso, no tomo 1 da obra Nebulosas do pensamento urbanístico (org. de Paola B. Jacques e Margareth S. Pereira; Salvador: Editora da UFBA, 2018; p.100-121). Livro disponível em: ritavelloso.net/wp-content/uploads/2019/06/Pensar_por_Constelacoes_Nebulosas_do_Pen.pdf

[nota 2]. Tradução de João Moita (o ensaio-poema foi publicado em Men in the off hours, livro lançado em 2000). Disponível em: enfermaria6.com/blog/2013/12/2/ensaio-sobre-aquilo-em-que-mais-penso-anne-carson

[nota 3]. Aspas do ensaio Tradução como cultura, de Gayatri Chakravorty Spivak, publicado na revista Ilha do Desterro, da UFSC (no 48, p.41-64; jan./jun. 2005). Tradução de Eliana Ávila e Liane Schneider.