Marilene Felinto Divulgação

 

Uma ex-aluna de desenho, agora já crescida, recorda lições aprendidas com uma professora de nome Carmem. O intento é justamente fazer o retrato da mestra, figura persistente que conduzia a classe de adolescentes entre o rigor e o espanto.

Este, o resumo de um dos 10 contos que integram a reunião Mulher feita, de Marilene Felinto, recém-publicada pela editora Fósforo. Poucos textos como este, intitulado Hipertexto a lápis e que abre o volume, podem ser mais reveladores sobre o método de trabalho e o modo de compreender o próprio ofício.

Marilene é autora que gosta de se sentir outsider. Não tem pressa em publicar e, quando o faz, é capaz de potências desconcertantes, para além das formas conhecidas da literatura brasileira. Como se sabe, admira o espírito incansavelmente laborioso de Graciliano Ramos, por um lado. Por outro, em seu texto é costume reconhecer certa tradição clariciana, de transformar pequenos acontecimentos em oportunidade de mergulhos interiores profundos.

Em Hipertexto a lápis, a moça que se iniciava na arte do desenho compreendeu, em sua puberdade escolar, que escrever a lápis dava a chance de apagar o que fosse, para refazer infinitamente, ou mesmo desistir do esboço, todo ele, se assim desejasse.

Um processo obsoleto, sem dúvida. O grafite gasto, como admite a narradora, exige um apontador, um estilete, uma ponta fina que faria recomeçar o range-range do desenho — ou da escrita — sobre o papel, para que fosse possível fincar a letra a ser apagada com borracha caso ela errasse. Obsoleto, mas libertador em sua angústia, pois permite erros e recomeços. Ex-aluna antiga, diz um pouco mais adiante que prefere o velho processo de escuridão, “o mistério da letra manuscrita revelando-se curva a curva da caligrafia, no papel mudo”, às telas de luz do presente. Nisso de fincar a letra — a ser apagada —, às vezes aplicava uma tal força extrema ao lápis na página, que fazia o papel se rasgar. No fundo, era a raiva de não conseguir desenhar em perspectiva.

Tal inabilidade faz da narradora alguém que tampouco consegue se ver como era ou seria. Só lhe restava achar-se “feia e confusa”, como dizia, cruel e repetidamente, o pai.

Quem é o pai da narradora? O patriarca é apresentado como um bruto que bate pregos de todos os tamanhos, a habilidade extrema de serrar madeira, lixar ferros e manejar martelos, formões, plainas, serras e serrotes no fundo do quintal da casa. Com suas ferramentas tão parecidas com as da aula de desenho, só que feitas de aço fino, é um inventor de coisas com um superpoder de aniquilar com suas palavras a filha, restando a ela somente o deslocamento para a inaptidão. Mas ela não vai desistir do desenho, apesar de ter como apagar, se assim desejasse.

De volta a dona Carmem, a ela a narradora deve a descoberta da insuportável perspectiva de sua própria beleza, quando encontra, não sem suspense e pavor, sua capacidade de ver refletida sua linguagem única. Na representação que tenta fazer da professora, compreende que seria “uma concepção, uma formulação” de si mesma. É entretida entre as duas figuras, a do pai e a da mestra, que a narradora segue até o ponto final, quando conclui, não exatamente o desenho, mas o texto.

A narradora é lindamente hábil, e disso o leitor não terá dúvida ao percorrer o que está escrito. Ao fazer o retrato da mestra, escolheu por ordem, conforme dona Carmem tinha ensinado sobre os lápis de desenho, “seus usos, intensidades, os tons e a espessura dos grafites [...] dos lápis mais macios aos de acabamento — o H e o HB para os traços iniciais, o 2B para dar definição, e o 6B para finalizar.”

Representar dona Carmem é escrever-desenhar, “descrever, reescrever... refazer.” E o discurso que “tentava se enquadrar no quadriculado da página do caderno”, “extrapolava os limites, não se enquadrava e voltava — o reescrito, o redesenho, o hipertexto.”

Não resisti ao close reading que a leitura deste primeiro conto me permitiu fazer para compreender esta reunião de ficções curtas. E todo o tempo, enquanto percorria as páginas de Mulher feita, procurei o desenho da narradora de Marilene. Os outros 9 contos se estruturam a partir de pequenos acontecimentos, ou lembranças de cenas, receitas ou hábitos compartilhados, ou mesmo encontros por vezes fugazes, que, no entanto, vão se adensando em muitas camadas a lápis, dos mais finos aos de acabamento.

Só nos resta agradecer que, desta vez, os textos não foram apagados quando ainda eram esboços, o mundo desenhado por Marilene nos chega sob a forma de livro.