Lu Menezes Divulgação

 

O lançamento deste novo livro de poemas de Lu Menezes é um acontecimento. Além de Labor de sondar, conjunto de inéditos que abre e dá nome ao volume, a edição traz, também, reunida pela primeira vez, toda sua poesia. Esta reunião completa era necessária, e sua aparição nos alegra, isto porque a refinada poeta maranhense, que já morou em Brasília e hoje se encontra radicada no Rio de Janeiro, é também muito discreta – sempre publicou pouco e em livros de pequenas tiragens.

É preciso ressaltar ainda o trabalho editorial primoroso realizado pelas editoras Luna Parque e Fósforo, no preparo desta coletânea de Lu Menezes que sai pelo selo Círculo de Poemas. O cuidado editorial vai desde o texto preciso do poeta e tradutor João Moura Jr., que encontramos na orelha, à escolha da ordem decrescente dos livros reunidos, passando pela reprodução do texto de abertura escrito pela própria poeta ao seu livro talvez mais conhecido, Onde o céu descasca (2011), e também por trazer as “Notas da autora”. O livro se fecha com o agudo posfácio Questões de Eco de Flora Süssekind (Unirio), crítica de primeira hora de Menezes, além de um útil índice dos títulos dos poemas em ordem alfabética. Destaca-se também a elegância visual desta nova coleção de poesia, que utiliza inovadoras tipografias, informadas pelo obrigatório colofão na última página, onde os editores do Círculo acrescentam sutilmente um pequeno convite-emblema de leitura a cada livro da coleção. Junto às informações sobre as fontes de texto usadas e a impressão do livro, encontramos o seguinte: “Que tal um encontro entre o branco da Cordilheira dos Andes e o branco sobre branco de Malévich? A tinta de um teto que descasca.”

É no poema Versão, encontrado no livro que abre esta reunião, que surgem os diferentes brancos mencionados no colofão, experimentados em três estrofes-quadros, que se repetem como ecos a partir de pequenas contorções sintáticas. É trabalho também de artista minimalista e literal – land art – que do alto fabrica relações entre natureza e cultura, reabrindo novamente nosso mundo. A visualidade vai sendo construída e refeita pelo movimento reflexivo, e como explica Flora Süssekind em seu posfácio, o “poema como eco”, método poético meditativo de Lu Menezes, funciona pela “autoexposição de sua própria dinâmica especulativa”, como quando compara coisas similares para perceber diferenças. Vejamos a terceira e última estrofe-versão:

Lembra o branco sobre branco/ de Malévich, nos Andes, do avião,/ a visão de nuvens sobre neve,/ e converte a quase abstrata/ grandeza minimalista da Cordilheira/ em arquipioneira, imemorial/ versão daquela tela.

É pela reflexão ecoada da mente para a página que o “branco sobre o branco de Malévich” “converte” a “Cordilheira em arquipioneira”. O poema produz ecos sonoros e visuais pelo uso de rimas internas e de diversos materiais visuais, construindo mentalmente efêmeras instalações rítmicas, desvios para o branco. Sobre esta exploração vocovisual, Paula Glenadel em sua apresentação ao volume da Coleção Ciranda da Poesia (EdUERJ) dedicada à obra de Lu Menezes, escreve que “a ideia de tonalidade, na sua duplicidade de sentidos, oferece a possibilidade de construir uma aliança entre a visualidade (a cor) e a voz (o tom)”.[nota 1]

O “poema como eco” se conecta com o “poema como ensaio” que vem recebendo atenção na produção poética contemporânea. Ambos utilizam como método a exposição da reflexão de uma subjetividade pela experimentação que faz no e com o mundo, ou seja, pelo manuseio mental de matérias de toda espécie, da formiga ao diamante, de um quadro de Vermeer a um bordado de mulher, do filme no cinema ou na TV, do jornal à internet, da tinta à palavra. A extrema curiosidade enciclopedista de Lu Menezes “interessada em ciências, filosofia, técnicas e artes, com destaque para as teorias das cores e a questão da visão em geral”[nota 2] não pretende sistematizar e classificar, nem chegar a uma verdade. Trata-se de descrever objetivamente as coisas, mas através de uma exploração poética imaginativa, método poético que pode ser aproximado ao “literalismo da imaginação” da poeta objetivista norte-americana Marianne Moore, da qual, como se sabe, Elizabeth Bishop, citada no posfácio de Süssekind, também se aproxima. Assim, sua poética articula razão objetiva e sensibilidade imaginativa, e como explica Lu Menezes em seu texto de abertura ao livro Onde o céu descasca, sua poesia “só certa disposição da sensibilidade exige, além de alguma compreensão, imprescindível a realistas incorrigíveis como eu.”

Sobre seu livro Onde no mundo (2016), que também integra esta coletânea, Lu Menezes em entrevista diz que o escreveu “movida não por familiaridade, mas curiosidade pelo ‘bordado’; munida de uma enciclopédia e do Google, acabei tendo vertigem: aqueles pontos todos e, sobretudo, aquele ‘kitsch’ todo, em princípio, pouco me interessaram. Mas, garimpado, o campo revelou-se fecundo [...].”[nota 3] Sua curiosidade pelo bordado a conduz à exploração do espaço material da página e da escrita que agora atravessa o suporte da folha, e se revira em outra “versão”, criando um eco no verso que em sua “ininterrupta dualidade [...] permeia nossa existência.”[nota 4] No poema Lírio, retomando a pesquisa sobre o branco, ela expõe suas reflexões sobre o bordado:

A mim atrai somente o ponto “atrás”/ para — quem sabe? aventurar-me/ a bordar em linho branco/ um lírio branco/ com lastro/ em whiteworks/ e aroma/ malevichiano.

Se o “empenho de Mallarmé [foi] para encerrar todo discurso possível na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a tinta sobre o papel”,[nota 5] Lu Menezes borda branco sobre branco, atraída pelo ponto de trás, ampliando assim a espessura da palavra. Aqui não se trata apenas do branco em sua acepção negativa da ausência ou da dor, como em certas poetas, mas da pesquisa dos tons de branco, suas vibrações e possibilidades de abertura ao acontecimento.

A visualidade em sua poesia nunca se nos oferece como totalidade, descortinada, ela é antes um “labor de sondar” o mundo, realizada por uma subjetividade ciente que atua contaminada pelas memórias, pelas referências culturais, pelas linguagens midiáticas. Assim, explora, sem preconceitos e hierarquias, o mundo em vários ângulos, iluminações, levando em conta até os efeitos térmicos da matéria, como é explorado no poema Fata Morgana, de Onde o céu descasca, a produção da miragem no liso e branco deserto. Sua obra é atravessada pela pesquisa das múltiplas tonalidades de várias cores, com predomínio do branco, como nestes versos de seu livro Abre-te rosebud! (1996): “Branco que te ouço”, “Branco ideal e branco real”, “Falsos flocos de neve”, “[...] sorvete/ de coco ao céu”, “crânios de açúcar-candy”, “Leite tem lá”, “o sal de si”; e nestes de seu livro O amor é tão esguio (1979): “máximo branco”, “prédios de cor branca”. Para Lu Menezes, a “— página em branco —/ manifesta em sua alvura/ a latência do futuro.” Cada novo poema, sempre precário, surge na página branca, “arquipioneira”, como uma pequena nova utopia, pelo desejo de outra vez conseguir conferir espessura às palavras, dar relevo ao mundo, só possíveis, pelo trabalho a partir da “entidade chamada ‘subjetividade’, do ‘pensamento criativo’ e da ‘imaginação’”.[nota 6]

O título Elã bilateral, de outro poema também do livro Onde no mundo, é significativo do impulso que move sua escrita, uma energia de atravessamento que produz eco e simultaneamente comparações, ao fazer irromper a forma que aparece na frente e no avesso que a deforma – ou vice e versa. Jeanne Marie Gagnebin, a respeito do fragmento Caixa de costura do livro Infância berlinense: 1900, de Walter Benjamin, comenta que “a criança não borda somente para ver aparecer as flores esboçadas no lado ‘certo’ do papel, ela se encanta também pelo verso, por esse avesso labiríntico inseparável da ordem do desenho”.[nota 7] Os indomáveis “bastidores insinuando-se sopram”, irrompendo este elã bilateral:

exposto e oculto/ aqui devem valer, guiar/ já que saber algum/ me traz ao terreno/ — só velho fascínio/ feminino-extrafeminino./ Seja então o que eles,/ bastidores, quiserem!

Os bastidores se mantêm no poema em dupla acepção, tanto é o instrumento que segura o pano do bordado quanto o avesso, aquilo que não seria próprio de ser exposto, como o trabalho, o real, o não simbolizável, o raciocínio não discursivo. “Deixar exposto o trabalho é tudo que uma arte autônoma não poderia deixar evidente”, diz Adorno,[nota 8] pois ao expor o trabalho — o bastidor, o andaime, a construção – deixa na obra sua ligação com o mundo. Lu Menezes trabalha também com a memória deste fazer antigo, como maneira outra de lidar com o tempo passado, espécie de reconstrução da memória como lemos nestes versos: “Renda e bordado: ao tempo/ tangivelmente tecido”. Os fios da escrita bordada fisgam imagens em ruínas reconstruídas através do gesto empreendido por suas palavras-linhas, que funcionam como homenagem – no sentido mais próximo, que é o de tornar possível uma sobrevivência – a seus colegas de ofício: o marinheiro João Cândido, liderança da Revolta da Chibata (1910) que também foi bordador, Arthur Bispo do Rosário, a artista brasileira Rosana Palazyan que também através de bordados teceu um libelo de resistência em memória aos armênios. Ou ainda das “das valorosas Zuzu Angel e Arpilleras”, a primeira, estilista cujo filho foi morto durante a ditadura militar, e a segunda, nome de uma técnica criada por bordadeiras chilenas que se tornaram modo de expressão e resistência política.

A relação com o avesso – “feminino-extrafeminino” – intensifica a espessura de uma escrita que procura um incessante reviramento sobre si, na procura de outras dimensões da palavra. A poeta argentina Tamara Kamenszain, em ensaio sobre a relação milenar do bordado e da costura com o universo feminino, mostra como “algumas mulheres viraram o discurso teórico para trabalhá-lo do lado do avesso”. Como o pensamento meditativo que se faz pela experiência especulativa com e no mundo, a prática da costura e do bordado conduz “o raciocínio linear [...] por caminhos ziguezagueantes”.[nota 9] O elã presente no gesto do labor do bordado sonda outros ritmos, extrafemininos.

Se não podemos enquadrar a poesia de Lu Menezes como feminista, o que seria um reducionismo, sua “vida de mulher brasileira”[nota 10] emerge ou submerge nas linhas e fios de sua poesia. Como disse a poeta Ana Cristina Cesar, mulher “raramente deixa de escrever ‘como mulher’, e mesmo quando isso não ocorre vem uma leitora enfurecida, anos depois, e estranhamente a lê como mulher.”[nota 11] Neste Labor de sondar: Poesia reunida, o leitor e a leitora podem ler a partir da pista do feminino cujas linhas de tensão pelo “avesso se redimem: revelam-se/ ainda mais femininas que as genuínas.” Será possível um “Feminismo sereísta, sereias com seios caídos?”, ou ainda, “será protofeminista/ o pincel não ‘feminino’/ dessa autoretratista?”. “A mulher era só” uma mulher “tensa/ que pensa enquanto se penteia”, uma “dona de casa” preocupada com a entropia do dia a dia? Menezes explora ainda o universo de “certa mulher,/ rumando para seu self-céu,” assim como se interessa pela Querida holandesa de Vermeer (2020) a qual escreve uma carta. No poema Render, do livro Abre-te, rosebud!, já aparece o motivo da renda – do bordado –, e nele é descrito o método da escrita “de mulher braçal que sempre/ rentavelmente tece o que lhe acontece”.

E o que lhe acontece é o pensamento que se faz através da experiência de seu corpo no mundo. Colocá-lo na página só é possível pela linguagem que em eco se repete, ao simular pela imaginação semelhanças e diferenças, comunicando um outro real. Como escrito no colofão antes citado, sua poesia é a “tinta de um teto que descasca”, pois deixa sempre à mostra seu artifício. E o que seria motivo de tristeza para alguns, qual seja, que a linguagem não nos restitui diretamente os fatos, Lu Menezes nos conta, com alegria trágica que “o céu sempre descasca, e a ‘imperfeição é o nosso paraíso’, enquanto uma enigmática Banda de Moebius faz deslizar, continuamente, de allegro vivaz a blues desencantado e vice-versa, a música de fundo da nossa condição.”

 

NOTAS

[nota 1] Paula Glenadel, Apresentação. Em: Lu Menezes por Paula Glenadel. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020 (Coleção Ciranda da Poesia); p. 44.

[nota 2] Citação na p. 50 do livro citado na nota anterior.

[nota 3] Entrevista de Lu Menezes e Augusto Massi concedida a Masé Lemos, publicada na revista Alère (Unemat, ano 9, v. 14, no 2; dez. 2016; p. 263). Disponível em: periodicos.unemat.br/index.php/alere/article/view/1935/1734

[nota 4]. Declaração dada na entrevista citada na nota anterior (p. 270).

[nota 5] Michel Foucault, As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma Tannus Muchail; p. 420.

[nota 6] Lu Menezes, Entre um mouse e a Terra azul. Em: Carlito Azevedo, Flora Süssekind e Tânia Dias (orgs.), Vozes femininas: Gênero, mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: 7Letras/Fundação Casa de Rui Barbosa, 2003; p. 473.

[nota 7] Ver Jeanne-Marie Gagnebin, História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007; p. 92.

[nota 8] Citação reproduzida de: Peter Bürger, Teoria das vanguardas. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Tradução de José Pedro Antunes; p. 81.

[nota 9] Tamara Kamenszain, Bordado e costura do texto. Em: Fala, poesia. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2015 (Coleção Nomadismos). Tradução de Ana Isabel Borges, Ariadne Costa e Renato Rezende; p. 22.

[nota10] Aspas extraídas da entrevista mencionada na nota 3 deste texto (na p. 262).

[nota11] Ana Cristina Cesar, Crítica e tradução. São Paulo, Ática/ IMS, 1999; p. 247.