Resenha AndreBotton JoséFalero WEB

Ouvi falar de José Falero pela primeira vez em uma aula na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2019. Na época, estava cursando uma disciplina como aluno visitante e no momento das apresentações de nossas pesquisas, enquanto eu falava sobre minha tese (uma história da literatura marginal das periferias), o professor me recomendou a leitura de Vila Sapo, que tinha acabado de ser publicado pela editora Venas Abiertas. O livro de contos do autor oriundo de uma periferia de cara chamou minha atenção. Entrei em contato com José Falero e combinamos um encontro para ele me vender o livro na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Conversamos por mais de 30 minutos, saí daquele papo e devorei o livro.

Na época com 6 contos, diferentemente da edição publicada pela Todavia no mês passado – que conta com o inédito O episódio do bodoque –, a obra me chamou a atenção pela escrita elaborada e cuidadosa que consegue misturar gírias das quebradas porto-alegrenses, que em diversos textos conversa com o leitor e o chama para dentro da história. Além disso, os narradores sempre apresentam uma relação muito próxima com suas personagens, com o espaço da periferia e com a cidade de Porto Alegre. Por exemplo, no conto Um otário com sorte, texto que fecha a obra, em que o narrador-personagem sai da Vila Sapo para encontrar sua irmã do outro lado da cidade, ele tensiona e disputa relações com outras pessoas no ônibus, ou melhor, no bonde que pega, reflete e critica sobre o preconceito que sofre, sobre a forma como os moradores das margens de Porto Alegre são tratados:

“E aí, pá: um dos bancos tá vomitado. Fazia tempo que eu não via uma nojeira dessa. Mas não foi uma surpresa: era sábado, e aquilo devia ser obra de alguém que tinha voltado bêbado do baile, de manhã cedo. O fato de o vômito já estar seco corroborava o meu raciocínio. Só o que eu não conseguia entender era por que não tinham dado um jeito de limpar aquilo. Aquela porra já devia estar ali há mais de oito horas, e o bonde seguia circulando pela cidade sem problema nenhum. Bom, pensando bem, o descaso não é tão misterioso assim. É bonde do Pinheiro. Isso jamais teria sido admitido num T9 da vida, por exemplo. Jamais teria sido admitido porque, enfim, o T9 passa na PUC, passa no Petrópolis, passa na Bela Vista, passa até no Moinhos, se não engano: muita patricinha, muito playboy, muito universitário, muita gente de bem, muita gente decente pega o T9. Não pode ter vômito num T9 da vida. Mas num bonde do Pinheiro é sereno, não tem problema.”

A Lomba do Pinheiro, bairro da Zona Leste de Porto Alegre, é composta por diversas vilas, como Viçosa, São Carlos e a Sapo, que até então eu também não conhecia. No entanto, explicitamente no longo excerto acima, o texto do escritor despertava em mim um misto de sentimentos, pois a posição que o narrador ocupa é diretamente oposta à minha: eu era aquele aluno da PUC que não tinha me dado conta dessas diferenças cotidianas que passavam desapercebidas para mim, do espaço de privilégio que eu ocupo enquanto homem branco.

Para além da qualidade da escrita do Zé, como fica comprovado no Vila Sapo, no seu romance Os supridores (Todavia, 2020), ou no livro de crônicas Mas em que mundo tu vive?, da mesma editora, publicado em 2021, os seus textos nos tiram de um lugar de conforto. Há uma humanização que perturba e que nos leva para além do texto. Os narradores de Vila Sapo estão muito próximos das suas personagens e nos mostram o interior daquela periferia, suas peculiaridades, diferenças e problemas. No entanto, como em todas as periferias do Brasil, há espaço para sonhos, amores, desejos e beleza. O conto Aconteceu amor reforça um movimento que o leitor precisa fazer, pois duas crianças querem camisinhas, não as querem para o sexo, precisam delas para se divertir numa brincadeira ingênua.

Depois de ter lido o Vila Sapo, marquei uma entrevista com o autor,[nota1] ainda em 2019, eu precisava saber mais sobre a sua vida e a sua escrita. A gente se encontrou no centro de Porto Alegre, pegamos um bonde e, em cerca de 50 minutos, chegamos à Vila Sapo. Me apresentou sua família, tomamos um café, conheci alguns de seus amigos, compramos umas cervejas e nos sentamos nas escadarias da Vila Viçosa, ao lado da Vila Sapo, em frente a um campinho onde a gurizada jogava bola e ouvia funk. Por cerca de 2 horas, conversamos sobre literatura, suas influências ficcionais, sobre a trajetória do autor até ali, os planos de livros, sonhos e explicitamente sobre os contos do Vila Sapo.

Toda vez que releio Vila Sapo retorno àquele microcosmo real e ficcional. São textos que comprovam a qualidade do jovem escritor. Que abrigam tensões marcadas por entrecruzamentos nas ruas de Porto Alegre. Que desafiam o deslocamento de diversos leitores. Que alargam o corpus da literatura brasileira, que continua a se movimentar para outras territorialidades que nem sempre estão no centro do debate acadêmico. Que, por fim, abrigam a multiplicidade de sujeitos que se percebem, de um modo ou de outro, como a criança de O episódio do bodoque que sonha com o pai:

“E dessa vez o sonho não amenizou apenas a saudade, mas também um outro sentimento, menos definido, embora igualmente amargo. Sorrindo, o homem acariciou o rosto da criança, encarando-a cheio de orgulho.

— Não te preocupa, meu filho. O pai também errava os tiros de propósito.”


[nota1] A conversa foi publicada pela revista Navegações (PUCRS; v.15, no1, p. 1-17) e está disponível em: revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/42101