A publicação do romance Via Ápia, de Geovani Martins, confirma a alta qualidade da narrativa do jovem escritor carioca, já presente nos contos de seu livro de estreia, O sol na cabeça, de 2018. Em ambos, o que logo chama a atenção do leitor é a capacidade de criação de um estilo, não algo decorativo ou acessório, mas “o veículo para o intercâmbio entre a impressão imediata dos sentidos e a memória” individual ou cultural, segundo Susan Sontag.
Não é pouco para quem se propõe fazer da fala das comunidades dos morros cariocas uma linguagem literária, no sentido de torná-la comunicável além de suas fronteiras grupais. O próprio título do livro, ao sobrepor a “rainha das estradas” da Roma antiga, como era considerada a Via Ápia, à principal rua comercial da Rocinha que leva o mesmo nome, já indica a via de acesso irônico ao texto e a mobilização de seus significados, “suas palavras e sua melodia”.
Escrito como uma sorte de diário de várias vozes mediadas por um narrador que busca mimetizá-las – uma outra forma de abertura narrativa –, cobre o período de 27 de julho de 2011 a 26 de outubro de 2013, como indica a datação que nomeia cada capítulo do livro, período crucial que abrange a ocupação da Rocinha pela UPP, a famigerada Unidade de Polícia Pacificadora.
Narra a vida dos irmãos Washington e Wesley, e dos amigos Murilo, Biel e Douglas, equilibrando-se entre bicos eventuais, empregos precários, tráfico e consumo de drogas. Ao focar ora em um, ora em outro desses personagens a cada capítulo, o narrador empresta ao texto um ritmo acelerado, como se estivesse a escapar sempre do aparato policial que devia proteger sua comunidade, delineando, assim, em rede, os acontecimentos vivenciados e a violência que os constitui.
A condição precária da vida dos personagens, a apontar para a via sem saída da comunidade de excluídos a que pertencem, acentua neles o significado da vida como iminência da morte, que Douglas sente ao subir com os amigos a Pedra da Gávea: “essa coisa estranha, sempre escondida no meio de tanto pra sentir e pra fazer mas que pode aparecer a qualquer momento. Um passo em falso, um tiro, um carro, as pessoas morrem”. Clareza que se confunde, de modo comovente, com a luminosidade do sol nascente no fim da caminhada e a sensação, aparente, de finalmente “ter a cidade do Rio de Janeiro a seus pés” – promessa de felicidade sempre adiada.
Essa movimentação sem sair do lugar numa cidade onde “tudo parecia uma ofensa” demarca o lugar de fala dos personagens e dos narradores nos quais se desdobram, reforça o isolamento a que são submetidos e, ao mesmo tempo, enfatiza a responsabilidade narrativa que a situação demanda. Como percebe Gleyce, que desiste de fazer cinema e ser jornalista, mas age como tal ao destacar seu desconforto diante das notícias sobre a Rocinha: “Ela falou sobre a importância de ter gente de dentro contando aquelas histórias, com o ponto de vista do morador pro que vinha acontecendo”.
Contar de dentro: fazer do presente e das lembranças do passado uma forma narrativa de inserção numa comunidade em que as subjetividades se afirmam na sua singularidade social, cultural e linguística, apesar das atrocidades a que são submetidas a todo momento: “Como numa tatuagem, estavam marcados por tudo aquilo que viveram juntos”. Escrita do corpo, portanto, como a traçar um roteiro de fuga ou enfrentamento individual e coletivo da tragédia ao redor.
Fazer do relato dessas atrocidades uma das perspectivas da história do morro, da cidade e do nosso destino funesto como nação sem dúvida, mas também abrir caminho para sua superação, como a economia do signo literário deixa supor: narrar é resistir, nos lembra mais uma vez o velho Rosa. Ou no dizer do MC Marcinho, ao subir no palco para delírio de todos no seu canto a capela na Rocinha, livre da UPP: Nem melhor, nem pior, apenas diferente...
Ao assumir plenamente a função narrativa que lhe cabe, Geovani Martins dá um forte testemunho da nossa barbárie, sem meias-tintas ou meias-palavras, ciente como tantos de seus jovens colegas de ofício, do estado de emergência em que vivemos e da necessidade de enfrentá-lo. A força literária com que esses escritores têm iluminado nossa cena contemporânea é admirável enquanto documento e, mais do que isso, realização artística original. Poderiam se unir em coro a Drummond: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã”./ Entanto lutamos,/ mal rompe a manhã”. Pegou a visão, leitor?