Em Hospício é Deus, Maura Lopes Cançado (1929–1993) escreve que a loucura possui uma “marca de eternidade”, colocando-se em estado de distância, do que não se circunda: “Nem as pirâmides do Egito, nem as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura”, observa a escritora mineira que esteve internada no Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Assim, nessa marca, está posto algo de inalcançável, contínuos fragmentos narrativos que atravessam a loucura e confrontam o outro por meio de uma linguagem delirante. Dentro do contexto das produções artísticas realizadas ao longo de internações manicomiais, aceno para as perguntas feitas pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, no texto Loucura/delírio, acerca da relação entre poder e normatividade que se estabelece diante do delírio: “Mas quem dá a palavra? Quem decifra e interpreta a mensagem, e com base em que código? E quem escolhe a quem dar a palavra?”[nota 1]
É a partir dessas inquietações que procuro analisar a obra de Aurora Cursino (1896–1959), pintora e artista visual paulista, nascida em São José dos Campos, cuja história e produção estão, enfim, acessíveis aos leitores brasileiros através do lançamento da editora Veneta, intitulado Aurora: Memórias e delírios de uma mulher da vida. Assinado pela historiadora Silvana Jeha e pelo psicanalista Joel Birman, a obra é uma pesquisa atenta ao que restou de registros da vida de Cursino, tornando-se também fortuna crítica importante nas temáticas de saúde mental, arte e loucura. Além da parte textual, dividida em recortes da vida privada da pintora e análises de suas obras, as pinturas foram reproduzidas, como em um catálogo, o que torna este livro um objeto transitório entre os mundos da literatura, da saúde mental, da política e da arte; um tipo de documento histórico-artístico, importante para diluir as fronteiras que insistem em tentar destituir a liberdade da loucura e para legitimar a sua linguagem.
Nesse sentido, Jeha e Birman optaram por apresentar a figura de Cursino por meio do texto do catálogo da exposição Imagens do inconsciente, parte de um núcleo integrante da Mostra do Redescobrimento, realizada em 2000. Esse movimento inicial de localizar a pintora a partir de seu lugar como artista em circuito, de certa maneira, é um ponto de partida interessante para afastá-la do estigma do transtorno psíquico, apesar de, na descrição do texto, ele estar sinalizado: “Trabalhou como doméstica em diversas casas, mas não se fixava em nenhum emprego. Por último começou a viver em albergues noturnos. A partir daí foi internada no Hospital Psiquiátrico de Perdizes, onde permaneceu por três anos. Em 1944, com 48 anos de idade, foi internada no Hospital do Juquery. Começou a frequentar a Escola de Artes Plásticas do Juquery em 1948.” Também ali estão registrados a imposição do pai para um casamento com um homem de quem a artista não gostava, e os seus anos de prostituição. Mais adiante, o texto é finalizado com as seguintes frases: “Pintou até o início de 1958. [...] Foi lobotomizada em 1955. Aurora morreu em 30 de outubro de 1959”.
A pintura acompanhou Aurora Cursino ao longo de todas as suas fases de vida. E, nesses percursos, foram inúmeras as violências que atingiram a artista, não só em seus internamentos – o que culminou na intervenção violenta da lobotomia –, mas também em seu cotidiano anterior à institucionalização. Relatos de estupro, feridas pelo corpo, sangue, assédios e sequestros estão em várias de suas pinturas. Assim, se pensarmos que uma imagem é o que fica de um rastro, um sintoma na cisão do tempo, como visto por Georges Didi-Huberman, as pinturas de Cursino são como resquícios de uma memória sempre em vias de ser atacada e capturada em seu sintoma: “Sua obra conta histórias atravessadas por delírios evidentes, mas cheia de pistas e rastros de suas experiências sociais e pessoais – seja no Juquery ou antes. São seus principais assuntos: a condição da mulher; clérigos; autoridades policiais, políticos; personagens literários; familiares [...]. O repertório de Aurora é um jorro de gritos e sussurros sobre opressões e violências, e eventualmente algumas belezas”.
Dessa maneira, estar em contato com a sua obra é um levante de denúncia, uma possibilidade de escuta. Mas, de volta a Basaglia, penso que o delírio como Arte pode ser aplaudido e neutralizado pela norma e pela razão e, dessa maneira, permanecemos em uma encruzilhada: quanto do irracional ainda é contido a partir de nossas interpretações intelectuais, por exemplo. E, ao mesmo tempo, o quão importante é que o delírio ocupe um lugar cultural dentro de nossa sociedade, e de nosso consumo acadêmico, artístico. Em tal ponto de tensão, proponho investigar como o trabalho de Aurora Cursino e a sua relação com as questões de gênero e loucura são uma chance de abertura para nos mantermos nesse espaço de questionamento, talvez, incômodo, mas muito necessário para as discussões sobre arte, saúde mental e luta antimanicomial.
A pintora Aurora Cursino
(Alice Brill/ Instituto Moreira Salles/ Divulgação Ed. Veneta)
UMA MULHER EM DELÍRIO É UMA MULHER VIVA
Em uma breve retrospectiva, lembro de algumas mulheres brasileiras que estiveram internadas em hospitais psiquiátricos e registraram essa experiência dilacerante, como Aurora Cursino, por meio da escrita ou da imagem: as escritoras Stella do Patrocínio (1941–1992),[nota 2] Maura Lopes Cançado, já citada neste texto, e a artista visual Adelina Gomes (1916–1984). Seja na poesia-falatório, no diário, ou nas pinturas, a questão de gênero e suas relações com a loucura é algo que se vê não só nos temas – como a maternidade, a sexualidade, a prostituição – mas também é sustentado por uma estrutura violenta de abuso de poder. Como lembram Jeha e Birman em uma das notas do livro, faz parte do patriarcado, como visto por Heleieth Saffioti, o qual configura um “tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade” e “representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência.”
Destaco três pinturas, analisadas no livro, que me parecem importantes para compreender esse ambiente estrutural, temático e contínuo na obra de Cursino. Uma delas é analisada no capítulo que se intitula maternidade. Nele, vê-se uma criança, no centro do quadro, dentro do útero da mãe, e uma espécie de ducto leva a boca do bebê até os seios da figura materna. Ao redor da imagem, várias palavras tornam o quadro estridente; uma espécie de logorreia pulsa junto ao desenho. “Na pintura analisada há intervenções com a indefectível tinta preta, palavras berradas com contorno grosso, ou mesmo figuras rabiscadas, gritos de revolta na composição original. [...] Sabemos que uma mulher transviada não tem só problemas com a legislação, mas com todo o patriarcado, que vai interferir na sua maternidade, na sua profissão e na maior parte das suas escolhas. Ela expressa essa subjugação nos quadros, ao mesmo tempo que protesta contra toda essa legião de juízes, médicos, doutores em geral que dirigem sua vida e sua genitália”, escrevem Jeha e Birman.
Na segunda pintura, vê-se um ambiente composto por um poço, pela figura de um padre e algumas crianças. No quadro, está escrito que o padre amarrou Aurora Cursino e jogou-a no poço. Por fim, na terceira, tem-se uma espécie de fuga acontecendo – a palavra rapto está escrita. De certa maneira, as três imagens refletem o processo de opressão que o corpo da artista visual passou como um corpo, sobretudo, delirante, que se põe em movimento – seja na prostituição, na sua pintura, ou no seu processo psicótico. O patriarcado, estrutura de poder hierarquizada e invasora, também fez parte da construção da mulher dentro do discurso psiquiátrico. No texto Mulher, loucura e gênero: Aspectos da trajetória de Adelina Gomes (1916 – 1984), publicado na compilação Luta antimanicomial e feminismos: Inquietações e resistências (Editora Autografia, 2019), Heloísa Castelli Celeste afirma: “A partir do entrelaçamento da teoria da degeneração e da misoginia do saber psiquiátrico [...], é criada uma correlação entre a selvageria e o corpo feminino, o que lhes faria serem mais predispostas a abalos físicos e mentais”. Nesse sentido, as pinturas de Cursino manifestam que a vivacidade de uma mulher em delírio será sempre atravessada por certo tipo de lei misógina, um rapto, como dito por ela, que coloca essa mulher (todas essas) em classificações degenerativas e selvagens, levando-a à marginalização e ao sofrimento.
É difícil finalizar a leitura de Aurora: Memórias e delírios de uma mulher da vida de uma maneira esgotante, pois o livro reúne esse tipo de material que nos deixa em extensivas possibilidades de volta. E aí, possivelmente, está uma resposta em relação ao que discute Basaglia sobre relações de poder e interpretações do delírio: quem deu a voz à artista, quem de nós tentou codificar as suas pinturas não foi suficiente para alcançá-las ou destrinchá-las; o que Aurora Cursino nos deixou é incontornável, tem a marca da eternidade, como a loucura. É preciso sempre voltar às suas imagens, estar em proximidade com a criatividade que se encontra em cada uma, pois são nelas que ela anuncia a sua voz a si mesma e ao mundo.
NOTAS
[nota 1] Franco Basaglia (1924–1980) é um dos nomes mais importantes para a luta antimanicomial. Foi militante político, médico, psiquiatra responsável pelo Movimento da Psiquiatria Democrática, para qual os manicômios são estruturas de controle, espaços de segregação e repressão, que devem desaparecer por completo. Em 13 de maio de 1978, a Lei 180 determinou o fim dos manicômios na Itália e consolida novas práticas de atenção psicossocial; a lei ficou conhecida como Lei Basaglia. Loucura/delírio – texto publicado em 1979, escrito pelo autor em colaboração com Franca Ongaro Basaglia – encontra-se no livro Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica (Garamond Universitária, 2005; tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo).
[nota 2] Nos estudos sobre Stella do Patrocínio, destaco os trabalhos: Stella do Patrocínio: Da internação involuntária à poesia brasileira, dissertação de mestrado em Teoria e História Literária (Unicamp, 2020) da pesquisadora Anna Carolina Vicentini, e Uma encarnação encarnada em mim: Cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio (José Olympio, 2022), da poeta e pesquisadora Bruna Beber.