Amor e revolução talvez sejam dois dos substantivos mais soterrados de sentido e significado ao longo do tempo. Quando são transformados em verbos de ação – amar e revolucionar –, podem ser lidos com o cinismo imposto ao que se chama de pós-moderno. Porém, fora das lógicas que a estadunidense Audre Lorde reuniu na expressão patriarca branco europeu, a poesia de amor e revolução deixa de ser um luxo para ser, sim, uma questão de sobrevivência, na mais ampla significação dessa palavra.
Em Poemas mais ou menos de amor & outros poemas, antologia traduzida da poeta Diane di Prima (1934-2020; foto), é possível seguir traçando mais um ponto no mapa – junto com as traduções publicadas nos últimos anos de poetas como a já citada Lorde e Adrienne Rich, por exemplo – de uma geração de mulheres que pensavam sobre uma sobrevivência revolucionária como trabalhadoras da palavra, termo usado constantemente pela escritora Julia Raiz sobre as contemporâneas.
Os poemas reunidos neste volume, editado pela Jabuticaba, foram organizados e traduzidos pela pesquisadora e poeta Fernanda Morse, e traçam um breve, mas instigante, panorama da variedade poética produzida por di Prima em mais de 60 anos de trabalho. Morse, que, nos últimos anos, vem publicando essas traduções em revistas e sites, colabora com uma outra visada para uma recepção tímida – e mesmo problemática – que a poeta estadunidense já tinha no Brasil. O acerto de Fernanda não está apenas na escolha dos poemas e o cuidado instigado na tradução, mas também no texto que introduz o volume, direcionando a pessoa que lê para o que importa: encontrar a poeta e a tradutora como presença, esse ato performativo tão importante para aquelas pessoas que a inspiraram ainda na década de 1950, como as que frequentaram a cena Beat nos EUA.
Uma parcela da recepção de Diane di Prima no Brasil parte de um princípio de fetiche da sua produção, como, por exemplo, a ideia de que ela foi a única mulher da Geração Beat a ser publicada ainda na década de 1950. Em Memórias de uma Beatnik (1969) – lançado em 2013 pela editora Veneta, com tradução de Ludimila Hashimoto –, di Prima, quando forja algumas de suas lembranças, brinca justamente com o termo beatnik, criado por um jornalista para fazer beat soar mais pejorativo. O livro foi uma encomenda para que ela pudesse contar episódios, principalmente os sexuais, da vida errante de uma mulher em uma cena de homens.
Uso o verbo forjar porque di Prima fabrica de forma crítica a ansiedade fetichista masculina que as aventuras de Kerouac causaram ao serem editadas na década de 1950. Diane di Prima sabia que a escritora – que precisava comer, criar suas crianças e escrever poesia – poderia fornecer o que fazia de melhor: escrever o que fosse preciso e de qualquer lugar, inclusive fora de um teto todo seu – indo além daquele proposto por Virginia Woolf e re-visado de forma ativa e complexa por Gloria Anzaldúa em Falando em línguas: Uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo.
Pois é justamente o endereçamento o tipo de ação revolucionária, prática do que chamei há pouco de ato performativo, que atua nos Poemas mais ou menos de amor. Essa leitura é possível, talvez, porque Fernanda Morse, na pesquisa, coloca di Prima para conversar com Ana Cristina Cesar, mas, também, porque muitos dos poemas soam ainda melhores quando lidos em voz alta, saindo da boca para os ouvidos, sem deixar de dançar, também, na página. Os usos da linguagem coloquial trazem frescor e diminuem distâncias temporais de produção. Ainda, a poeta faz contraponto com preocupações formais de sonoridade e montagem dos versos, que mostram como seu diálogo com poetas teóricos, como Ezra Pound, foi definidor para uma maior elaboração de suas temáticas e projetos poéticos ao longo do tempo.
Apesar de a tradutora dizer que a única linha de sistematização se refere à antologia Pieces of a song, organizada pela própria poeta na década de 1990, os poemas deslizam pelo amor, revolução e ideias de parentesco com seres humanos e não humanos, fluindo em metamorfoses que destacam a vontade de viver e amar da poeta e do seu duplo exposto na página. Poemas de amor atravessam sexualidade e maternidade, assim como aqueles sobre histórias de antepassados revolucionários atravessam parcerias e lutas materiais e da mente.
O destaque nessa breve antologia de Diane di Prima são os modos com os quais ela faz parentesco, ao estilo de Donna Haraway, não apenas nas concepções religiosas e filosóficas baseadas no zen-budismo (do qual a poeta era praticante), mas também na sua relação comunal com as pessoas, além das ideias que tinha de florescimento da vida pela via coletiva. Em Ode à elegância, por exemplo, a poeta vai do micro ao macro de um verso para o outro, compondo paisagens: mãos que são como “finas girafas/ erguendo-se ao sol em planícies distantes” para seguir com a “elegância do louva-a-deus e do besouro”, comparados a estrelas cadentes. A elegância está em tudo que possa viver e morrer de forma poética, assim como na lógica científica.
No poema A prática da evocação mágica, a voz poética sugere que “sou uma mulher e meus poemas/ são de mulher: fácil falar/ assim.”, e segue com uma elaboração da raiva, trazendo a “ductilidade” da fêmea mesmo golpe após golpe. Confirmando a construção pela via do diálogo, em uma entrevista citada no livro Girls who wore black (As meninas que vestiam preto), de 1996, di Prima diz que a poesia exige técnica para a execução de uma temática, mas que essa foi, durante muito tempo, passada inevitavelmente de homem para homem. Para ela, as conversas com poetas como Frank O’Hara e Allen Ginsberg, somadas aos trabalhos de ação, como a edição de publicações independentes, pavimentaram outros caminhos para as mulheres. Na verdade, di Prima trabalhou diretamente com outras e outros dentro de uma lógica de coletividade vista, e praticada, poucas vezes.
No ensaio Poesia não é um luxo, Audre Lorde (o texto está em Irmã outsider, livro traduzido por Stephanie Borges e publicado pela Autêntica) confirma a escrita como o tipo de luz que lançamos sobre a própria vida e a maneira pela qual a enxergamos – tanto a nossa quanto as das outras pessoas. Em Poemas mais ou menos de amor, é possível conhecer uma poeta e repensar as lógicas de muitas questões que ainda são pautas para mulheres e pessoas dissidentes vivendo nas lógicas do capitalismo individualista. O último poema do livro é curto e direto, e a voz poética indaga, nos quatro últimos versos: “quando minha hora chegar/ como vou deixar esse mundo// de uma vez & sem/ olhar pra trás?”, pois a poeta gosta das partidas e dos retornos; nesses poemas, sua voz endereça palavras não ensimesmadas a outras e outros; sua poesia sobrevive na tradução.