Como lidar com a patologia do universal em um mundo marcado por experiências de regimes totalitários, fechamento de fronteiras para refugiados e acirramento de tensões xenófobas exercidas por medidas de autoritarismo? A filosofia linguística de Barbara Cassin nos convida a dar vazão a essa pergunta, situando a alteridade no horizonte das humanidades e lançando luz sobre a tradução como paradigma ético. Seu Elogio da tradução: Complicar o universal acaba de chegar ao Brasil pela WMF Martins Fontes, em tradução de Daniel Falkemback e Simone Petry, seis anos após a sua publicação original na França. A obra propõe reconhecer, pela prática da tradução, que não há uma essência irredutível da linguagem (universal), apenas línguas (singulares). Mais: as línguas performam e instauram diferentes mundos. Quanto mais línguas se acessa, mais mundos se conhece.
No livro, Cassin retoma e desdobra pontos já trabalhados em outras obras, como Se Parmênides: O tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia (lançado no Brasil pela Autêntica, em 2015), La nostalgie: Quand donc est-on chez soi? (Autrement, 2013, ainda sem tradução brasileira) e o Dicionário dos intraduzíveis: Um vocabulário das filosofias, volume I (Autêntica, 2018). Filóloga, especialista em filosofia grega antiga e diretora de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, em francês), Cassin foi eleita em maio de 2018 para a Academia Francesa, tendo recebido em 2012 o Grande Prêmio de Filosofia da instituição pelo conjunto de sua obra. A relação da helenista com o Brasil vem de longa data e abarca uma ampla rede de colaboradores. Foi no Brasil de Lula que seus melhores doutorandos, recorda Cassin, encontraram acolhimento institucional para se dedicar à filosofia grega. O prefácio que redigiu para este Elogio da tradução, intitulado Elogio ao Brasil, exalta as outras maneiras de estar em casa experimentadas por ela aqui. Cassin, sem embargo, não esconde a perplexidade de ver hoje um not my president ocupando o Palácio do Planalto. Como podem as brasileiras, interpela a autora, tê-lo escolhido?
Em um momento no qual os nacionalismos de extrema-direita recrudescem em escala planetária, há de se confrontar veementemente a propagação de ódio contra estrangeiros e migrantes. Nesse sentido, o ensaio “Entre” aponta para a profusão de nomes que temos o poder de atribuir à relação com o outro: de um lado, “repulsa, escravidão, colonização, caridade, aculturação, assimilação, integração”; de outro, “acolhimento, hospitalidade, abertura, reciprocidade, invenção”. É pelo léxico da aceitação do diferente que a tradução se revela, para as línguas, “o que a política é para os homens”. Pois a tradução, argumenta Cassin, conduz à descoberta de uma zona de fronteira, um entre, entre duas ou mais línguas, entre duas ou mais traduções possíveis. Mas a autora enfatiza e celebra uma ambiguidade: entre, em francês e em português, é também o imperativo de entrar (entrer): um convite à hospitalidade, um intervalo que permite levar o outro em consideração.
Elogio da tradução dá continuidade a uma obra que, alicerçando-se na sofística de Górgias e Protágoras, em contraste com a coerência do logos aristotélico, identificou, na homonímia e na equivocidade do grego antigo, modos de repensar a universalidade sem achatá-la em uma universalidade do Uno. A alternativa de Cassin aos nacionalismos identitários é o que chama de um “relativismo consequente”, baseado no comparativo “melhor para” (meilleur pour). Não se pode abster de escolher o que é “melhor para” em situações concretas, e tal julgamento é um gesto político necessário e a serviço da vida em comum. Se, como vem reiterando a filósofa ao longo de sua trajetória, o intraduzível não é aquilo que não se pode traduzir, mas o que não se cessa de (não) traduzir, não se chega a soluções cabais no savoir-faire com as diferenças. Prevalece, na expressão de Hannah Arendt revisitada por Cassin, a “equivocidade vacilante do mundo”: as supostas essências linguísticas vacilam quando se chega às fronteiras de uma comunidade. Assim sendo, a tradução, como disse o filósofo brasileiro Cláudio Oliveira (UFF) sobre a obra da francesa, configura-se como prática que faz “aparecer o intraduzível”.[nota 1] (Des)traduzir o intraduzível: violação constante do princípio da não contradição.
Cassin ecoa o brado de Achille Mbembe, no livro Crítica da razão negra, em favor de um contraimaginário que “se oponha ao imaginário demente de uma sociedade sem estrangeiros”. Em uma reflexão consoante, penso no sentimento anti-indígena incitado pelo “Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos”. Insinuam-se, em contraposição, ressonâncias com a filosofia política dos Guarani, para a qual, conforme enunciou o xamã Soria para o etnógrafo Pierre Clastres, o Uno é recusado na Terra sem Mal que almejam: “As coisas em sua totalidade são uma. E para nós que não desejamos isso, elas são más”.[nota 2] Em Cassin, a refutação do privilégio do Uno encarnado no logos caminha ao lado da valorização do multilinguismo na produção filosófica.
Pensando com a helenista a partir do contexto sul-americano, cabe questionar, à guisa de conclusão, quantas filosofias jazem em tantas línguas indígenas que repousaram ao longo da história. Escuto na exaltação da hospitalidade oferecida por Cassin também uma exortação: que possamos agir diante da perda de línguas minoritárias, violência plasmada no monolinguismo, vírus propagado pelos processos de colonização e pela colonialidade que persiste. Conforme discute Bruna Franchetto (UFRJ) no âmbito da linguística e da antropologia, trata-se de uma doença que incorre no perecimento de referenciais cosmológicos, ecológicos e históricos. Se, como refletiu Hannah Arendt em sua expatriação forçada pelo nazismo, a língua materna é o lar em que se continua a habitar no exílio – e compreendendo que as línguas maternas são sempre plurais –, minar o multilinguismo, essa casa compartilhada, é desabrigar a si e a outrem. Pelo direito ao entre, cabe a cada um defender o múltiplo, responsabilidade coletiva.
NOTAS
[nota 1] Ver: revistacult.uol.com.br/home/da-intraduzibilidade-como-politica/
[nota 2] Pierre Clastres, Do Um sem o Múltiplo. Em: A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Tradução de Theo Santiago. Citação na p. 188.