Resenha Daniel Mella Divulgação setembro.22

 

 

Em geral, depois de escrever uma resenha fico com três ou quatro possibilidades de abordagem que acabo não seguindo, escritas em alguma folha de caderno largada em um canto da mesa. Por vezes, são só uma listinha de palavras que indicam caminhos possíveis para a leitura que acabam não sendo trilhados no fim das contas. Para escrever sobre o O irmão mais velho – romance do escritor uruguaio Daniel Mella (foto) publicado pela editora Autêntica (tradução de Sérgio Karam), vencedor do Prêmio Bartolomé Hidalgo em 2017 –, a escolha da abordagem tinha algo que beirava o desonesto, pois não havia o que escolher, propriamente. Se a obra, desde a sua primeira frase, gira obstinadamente em torno do luto (“Sua morte vai cair num 9 de fevereiro, para sempre dois dias antes de meu aniversário”), e ainda por cima tratando-se de uma história em grande parte verdadeira – o irmão de Mella morreu em 2014 –, então o caminho para falar dela só pode ser uma discussão sobre as maneiras como esse assunto é trabalhado ao longo da ficção.

No enredo, um narrador em primeira pessoa escreve sobre os dias que se seguiram à morte de seu irmão mais novo, Ale, de 31 anos, que foi atingido por um raio enquanto fazia uma viagem à praia. No entanto, um detalhe ao qual gostaria de me dedicar especialmente ao longo desta resenha é a maneira como se dá a narração. Isto porque Dani, como é chamado o narrador, não apenas conta os eventos que se seguiram à morte de seu irmão, mas senta-se alguns dias após o velório para escrever sobre ele e buscar algum sentido para a vida após a tragédia. Assim, não se trata apenas de um romance sobre o luto, mas de um livro que, ao dramatizar o ato da escrita, acaba por integrá-lo ao próprio processo de elaboração da personagem principal.

Em certo contraste com a decisão de escrever sobre seu irmão, a notícia que abre o romance é recebida por Dani com bastante ressentimento. O protagonista culpa tudo e a todos, inclusive a si mesmo – mas principalmente seu irmão morto –, pelo que está acontecendo. Nessa cena há um diálogo importante, no qual a mãe dos dois, logo que recebe a notícia, pergunta-se em voz alta: “Por que justo ele, que gostava tanto da vida?”. Ao que Dani responde com sarcasmo: “Você tem razão. Teria de ter sido eu.” Esta frase antecipa muitas das formas que o luto dele tomará, pois quase todas giram em torno da maneira como Ale era enxergado por seu irmão mais velho.

Fica bastante claro conforme avançamos na leitura que a obra cumpre o que seu título, O irmão mais velho, indica: não é um romance necessariamente sobre o morto, mas, sim, sobre quem fica, quem precisa lidar subitamente com os pesos e pequenos ressentimentos que se acumularam por toda uma vida.

A cena do velório representa um ponto de virada importante na trama. Entre a música que tocava e as pessoas que compartilhavam boas memórias de Ale, a cerimônia adquire uma atmosfera de quase festa. A figura reluzente de Ale está lá em seu último grau de esplendor. Apenas ele conseguiria, mesmo morto, fazer de seu velório uma celebração. Mas o que muda é a maneira como Dani se relaciona com tudo aquilo. Neste momento da trama, a luminosidade do irmão falecido deixa de apontar apenas para uma suposta falta de luz própria do protagonista, e passa a ser percebida com curiosidade por ele.

A partir da maneira como se dá a cena do velório é que surge em Dani a vontade de escrever um romance sobre seu irmão. No entanto, esse desejo se dá de uma maneira bastante específica: através da escrita é que o protagonista buscará uma forma de viver a tristeza causada pela perda ao mesmo tempo em que busca repassar todo o ressentimento e a raiva das primeiras páginas, que não deixavam de ter o seu papel defensivo contra a dor. Por conta disso, a ideia que leva à escrita de O irmão mais velho é tão importante para a obra e para a vivência do luto de Dani quanto qualquer outro dos vários elementos do romance.

O desejo não só de compreender aqueles dias, mas quase de revivê-los por outra perspectiva acaba por ressoar bastante com a escolha de narrar momentos cruciais do livro no futuro do presente, como é caso da primeira frase do livro já citada. A obra é composta principalmente por memórias e conversas sobre a vida dos irmãos, porém as ações que de fato ocorrem são narradas nesse tempo verbal, quase numa tentativa de repassá-las sem o peso do presente. Além disso, a escolha do futuro rouba do raio aquilo que ele teria de mais cruel: o súbito.

A maneira como a escrita e o desejo de escrever aparecem em O irmão mais velho são elementos preciosos do romance, através do qual o livro consegue se apropriar do gênero da autoficção de maneira criativa. De certo modo, a forma como o romance é escrito espelha os ressentimentos da própria personagem, que tem de superá-los para se aproximar de uma outra relação com a escrita e, ao mesmo tempo, com seu irmão. Uma relação a partir da qual seria possível se reapropriar daqueles dias e de seu emaranhado de afetos de uma outra forma.