Resenha Deleuze Otto Wegener Domínio Público via Wikimedia Commons setembro.22

 

Pensado primeiramente como um estudo direcionado e restrito às categorias do signo na obra de Marcel Proust (1871-1922), o debruçar-se de Gilles Deleuze (1925-1995) sobre Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu) acabou por se revelar um périplo de constantes ampliações e modificações. Da primeira parte, publicada em 1964, ao texto que foi apresentado e finalizado em 1973, e que agora recebe uma nova tradução para o português, de Roberto Machado (1942-2021), houve revisões, acréscimos, enxertos, alterações na forma e na organização das suas partes. Cinquenta anos depois, Proust e os signos (Editora 34), volume em que Deleuze concentrou suas investigações sobre a saga proustiana, mantém vigentes as suas reverberações sobre um enigma literário que parece nunca se esgotar.

“Pedimos apenas que nos concedam que o problema de Proust é o dos signos em geral e que os signos constituem diferentes mundos: signos mundanos vazios, signos mentirosos do amor, signos sensíveis materiais e, finalmente, signos essenciais da arte (que transformam todos os outros)”, escreve Deleuze ao final do primeiro capítulo da parte inicial, colocando em movimento as primeiras arestas para o que será, daqui em diante, um modo de deciframento das engrenagens de Em busca do tempo perdido. Depois de, nesse primeiro momento, hierarquizar as categorias dos signos, Deleuze acabará por propor uma interpretação mesclada, de níveis que se contaminam ao longo de um processo – longo, tortuoso, possivelmente dolorido – de aprendizado. Os signos da arte, chave para levar a cabo esse processo, ao subir à superfície devem embaralhar e redistribuir todos os outros.

Na investigação de Deleuze, algumas das constantes quase inevitáveis em qualquer estudo sobre a escrita de Proust acabam por se reacomodar em patamares laterais da análise, ao passo que a força de outras linhas de proposição se estabelece. A epifania da madeleine parece, aqui, menos relevante para a interpretação dos signos e dos mecanismos da narrativa do que outras passagens que se distribuem pelo texto da Recherche, assim como os tópicos da memória e da recordação se tornam caminhos quem sabe acessórios se comparados com outros fenômenos a se decifrar; trata-se de buscar uma outra modalidade de leitura, de desviar-se do suposto poder dos temas e do que parecem exigir as emergências automáticas.

Escreve Deleuze que “o essencial na Recherche não é a memória nem o tempo, mas o signo e a verdade. O essencial não é se lembrar, mas aprender; porque a memória só vale como uma faculdade capaz de interpretar certos signos e o tempo só vale como a matéria ou o tipo dessa ou daquela verdade. E a lembrança, ora voluntária, ora involuntária, só intervém em momentos precisos do aprendizado, para contrair o efeito ou para abrir novos caminhos. As noções da Recherche são: o signo, o sentido, a essência; a continuidade dos aprendizados e o modo brusco das revelações”. Em Proust e os signos, Deleuze localiza o narrador da obra de Marcel Proust como um indivíduo que, se bem não deixa de se envolver nos fios do tempo perdido, mais do que nada se põe a olhar para a frente, para um tempo e um fazer futuros.

Daí, talvez, o motor de algumas das insistências mais demarcadas no volume presente: a de que, para a devida realização do maquinário proustiano, a inteligência só deve atuar depois; a confiança de que, ao final, os signos da arte acabarão por reorganizar os signos mundanos (e os do amor, e os das matérias sensíveis, entre outros); e a sugestão de que não há aprendizado ou revelação, ou mesmo a devidapercepção sensível do passado, senão no desfecho de um determinado processo de aprendizado, que em Proust acompanhamos tão de perto da pele do narrador. Porque, depois de estabelecer as categorias dos signos presentes na obra, Deleuze, na segunda parte do conjunto, denominada A máquina literária, trata de esmiuçar os funcionamentos ali contidos – as contiguidades entre os materiais, a possibilidade ou não de comunicação entre as partes do romance, o estatuto de fragmento e o de conjunto, a presença de um estilo, o exercício do intertexto.

Quanto ao funcionamento dessa máquina de ressonâncias, Deleuze escreverá que “a Recherche é construída sobre uma série de oposições. À observação, Proust opõe a sensibilidade; à filosofia, o pensamento; à reflexão, a tradução; ao uso lógico ou conjunto de todas as nossas faculdades, que a inteligência precede e faz convergir na ficção de uma ‘alma total’, um uso dislógico e disjunto que mostra que nunca dispomos de todas as faculdades ao mesmo tempo e que a inteligência vem sempre depois”. O uso “dislógico e disjunto” das faculdades formaria, na escrita de Proust, uma série de partes que não desejam a totalidade ou a unidade plena, texto em que cabem fragmentos e matérias de qualidades e registros heterogêneos.

“Não há uma sonata ou um septeto na Recherche; é a própria Recherche que é uma sonata, um septeto e também uma ópera-bufa; e Proust acrescenta: uma catedral ou ainda um vestido”, anota Deleuze a respeito dessa unidade que escapa, que, na verdade, nunca se busca e na que não se acredita. Ao final, na conclusão à segunda parte que aparece como o último adendo ao volume, nove anos depois da primeira versão, Deleuze afirmará que, menos que a catedral ou o vestido, a obra de Proust buscará os traços da teia de aranha, tecido que ganha forma no presente do fazer, à medida que o narrador se desloca reagindo aos gestos e movimentos de uma hipotética presa; nessa conclusão, que abre novas aberturas para a leitura de Em busca do tempo perdido, o signo que salta é, pela primeira vez no volume, o da loucura.