Há muito tempo, a antropologia vem nos ensinando que a nossa maneira de dar significado à diferença pode abrir espaço a uma forma de sociabilidade mais hospitaleira, descentrando as bases culturais que compõem a consistência de nossos lugares subjetivos para acolhermos – e sermos acolhidos – por outros mundos. Em O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami, Hanna Limulja dá sequência a essa tradição emancipadora da antropologia, convidando-nos a conhecer o mundo yanomami através de seus sonhos. O livro é fruto da pesquisa de doutorado realizada entre os Yanomami da comunidade do Pya ú (região do Rio Toototopi, perto da fronteira de Roraima com a Venezuela), que compartilharam com a autora seus sonhos, mitos e vidas, e com os quais ela conviveu por períodos alternados entre novembro de 2015 e fevereiro de 2017, totalizando onze meses de trabalho de campo.
Ao longo da pesquisa, Limulja recolheu sonhos de xamãs e de pessoas “comuns” que versavam sobre os mais variados temas: caçadas, festas, mitos, sonhos com parentes mortos ou ausentes, com lugares distantes ou desconhecidos. Seu livro busca apresentar a vida onírica yanomami a pessoas que talvez nunca tenham ouvido falar deste povo, para que conheçam um pouco de seus pensamentos e, quem sabe, possam sonhar com outros modos de habitar e criar mundos. Publicada pela Ubu com apoio do Instituto Socioambiental, a edição é parte das celebrações dos 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, ocorrida em 1992, mas que enfrenta hoje o pior momento de exploração por garimpo desde então.
A autora teve seu primeiro contato com os Yanomami em 2008, quando foi contratada para trabalhar como assessora pedagógica num programa de educação intercultural desenvolvido pela Comissão Pró-Yanomami. Ao permanecer por longos períodos na floresta, ela passaria a sonhar intensamente. Quando voltava para a cidade, conversava com o líder e xamã Davi Kopenawa, que sempre tinha uma explicação para os seus sonhos. Em 2011, Limulja se mudou para a Venezuela para assessorar escolas yanomami do outro lado da fronteira. Por lá ficaria até 2012, quando resolveu voltar para a Universidade.
Ainda que muitos/as antropólogos/as tenham trabalhado com os Yanomami, a autora se surpreendeu ao constatar a falta de referências aos sonhos em seus textos, uma vez que o tema é presença constante nas conversas do dia a dia. No entanto, ao ler A queda do céu (2015), livro escrito a partir do diálogo entre Kopenawa e o etnólogo Bruce Albert, Limulja teve a certeza do papel preponderante dos sonhos na concepção de mundo yanomami: “Era a primeira vez que me deparava com um livro sobre os Yanomami cujas referências aos sonhos não apenas eram inumeráveis como praticamente atravessavam toda a narrativa e, num certo sentido, a ultrapassavam”.
Quando criança, Kopenawa sonhava com seres que ainda não conhecia. Eles se aproximavam lentamente, envoltos numa luminosidade ofuscante, primorosamente pintados de urucum e enfeitados com penas de pássaros. Eram os espíritos xapiri pë, que o observavam e se interessavam por ele, desejando que um dia se tornasse xamã. Mais tarde, depois de ver seus parentes morrerem por causa das epidemias trazidas pelos brancos (napë pë), ele começaria a viajar pelo mundo, com o intuito de falar sobre as ameaças que seu povo e a floresta estavam sofrendo. Nesses deslocamentos, observou que os brancos estão sempre com pressa, correndo de um lado para o outro, e que em suas cidades não é mais possível conhecer as coisas do sonho. Segundo o xamã, os brancos dormem muito, mas só sonham consigo mesmos. Já para os integrantes do seu povo, o sonho é uma das portas de entrada a tudo aquilo que é desconhecido.
Quando um yanomami dorme à noite, seu corpo permanece deitado na rede, enquanto o pei utupë, espécie de imagem vital, desprende-se e pode viajar por lugares que o sonhador percorreu durante o dia, ou mesmo por locais distantes e desconhecidos, interagindo com outros seres do cosmos.Tudo o que se vê em sonho é imagem, e tudo no mundo – pessoas, animais, plantas e coisas –possui uma imagem vital. É, portanto, no “tempo do sonho” (mari tëhë) que as imagens podem se encontrar.
Essa separação entre corpo e imagem é a mesma que ocorre no momento da morte, quando a imagem se transforma em espectro e vai viver nas costas do céu, o hutu mosi. O sonho, então, inscreve-se na vida como uma forma atenuada de morte. “O sonho é a terceira margem do rio, é a boa distância que separa vivos e mortos. Distância essa que não pode ser ultrapassada, sob penalidade máxima de se encontrar de maneira irremediável na outra margem, que é a morte”, explica Limulja.
Para a autora, tanto as experiências que ocorrem no sonho como as que se passam durante a vigília se desenrolam à maneira de uma fita de Moebius, superfície topológica que aparenta ter dois lados, mas que na verdade só tem um. Afinal, ainda que os Yanomami saibam diferenciar o que vivenciam nos sonhos daquilo que experimentam durante o dia, as experiências oníricas são consideradas tão importantes como aquelas da vida desperta.
Ao contrário do que supõe a psicanálise freudiana, para a qual o sonho seria o resultado de um desejo inconsciente de quem sonha, no caso dos Yanomami o sonho se constitui como o desejo manifesto de um outro, seja esse outro um morto, um parente temporariamente ausente, um espírito ou um animal. Isso não significa que os sonhos determinem a vida das pessoas, e, sim, que eles operam como formas de orientação. É por isso que compartilhar o sonho é uma prática imprescindível, pois a socialização permite que, em caso de mau presságio, o sonhador ou a pessoa afetada pelo sonho tome as devidas precauções, impedindo que o infortúnio aconteça.
Ao longo das conversas em seu trabalho de campo, Limulja foi notando que, quando pedia aos xamãs que lhe contassem seus sonhos, eles acabavam falando dos mitos. E, quando passou a perguntar a respeito dos mitos, estes eram narrados como eventos que haviam acontecido, uma vez que foram sonhados ou vistos pelos xamãs quando estavam sob efeito da yãkoana, substância psicoativa fundamental do xamanismo yanomami. Foi assim que ela passou a trabalhar com a tese de que as transformações dos mitos decorrem de suas atualizações por meio dos sonhos, engendrando um espaço-tempo que possibilita a dinâmica de um mundo em constante construção.
Se, como nos ensinou Davi Kopenawa, é por meio dos sonhos que os Yanomami fazem política com os demais seres do cosmos, Limulja considera que mais do que nunca precisamos aprender a fazer política como e com os Yanomami. Entretanto, se quisermos aprender a sonhar com um modo de ser diferente do nosso, não devemos perder de vista que os sonhos que aparecem belamente descritos nas páginas de seu livro estão em perigo, uma vez que a floresta e a própria existência dessas pessoas estão sob constante ameaça.