O escritor é alguém que, mais do que qualquer outra pessoa, tem dificuldade para escrever – pelo menos é assim que o define Thomas Mann, numa dessas frases que são tão citadas que é difícil determinar sua origem. Charles Darwin (1809-1882) morreu antes dessa frase ser formulada, mas provavelmente estaria muito de acordo com ela: o autor de um livro que vendeu em um dia suas 1250 cópias e foi traduzido para 11 línguas ainda no século XIX admite, em sua autobiografia, que sempre teve dificuldade para se expressar com clareza e concisão. E foi por causa dessa dificuldade, como ele conta, que descobriu os melhores métodos para escrever: no lugar de pensar nas ideias antes de colocá-las no papel, ele entendeu que economizaria tempo ao rabiscar páginas inteiras, com o que chamou de “um estilo pavoroso”, em velocidade máxima, abreviando palavras, e só depois voltar, reler e fazer uma correção mais longa e atenta. “Muitas vezes, as frases assim rabiscadas são melhores do que as que eu conseguiria redigir deliberadamente.”
Entre essa velocidade máxima com que Darwin rabiscava palavras pela metade e a sua demora de quase 20 anos para publicar A origem das espécies, aí está seu verdadeiro trabalho de escritor, esse homem que sofre para se expressar. Podemos acompanhar um pouco desses dois tempos darwinianos – o rápido e pavoroso, de um lado, e o lento e minucioso, de outro – no livro Fundamentos de A origem das espécies, que saiu recentemente pela Editora Unesp, com tradução e introdução de Lara Pimentel Anastacio. Nele encontramos os dois ensaios, de 1842 e 1844, nos quais estão os alicerces subterrâneos para o que se tornaria, só em 1859, a maior obra de Darwin.
Editados e anotados pelo seu filho Francis Darwin – que reestabeleceu os textos decifrando rabiscos e preocupando-se em manter as palavras rasuradas –, esses ensaios não foram publicados durante a vida do autor. A única pessoa com quem ele compartilhou o manuscrito, apenas do segundo ensaio (o mais longo e desenvolvido), foi Joseph Dalton Hooker. Para esse amigo botânico, com quem trocou mais de mil cartas, Charles Darwin já tinha escrito que declarar que as espécies não são imutáveis seria como confessar um assassinato.
Já o primeiro texto não foi dividido nem mesmo com os amigos. Ele é tão rabiscado que parece menos um ensaio e mais uma nota para si mesmo (contei 37 palavras marcadas como ilegíveis, além de anotações laterais como “reforçar conclusão”, “ilustrar com uma rede de relações” ou “compare o número de seres vivos”). Na verdade, ninguém sabia que tinha sido preservado, até que, depois da morte dos pais, Francis o encontrou guardado em um armário embaixo da escada, com outros papéis que ele chamou de “sem valor”, quase se desfazendo. Na apresentação à edição original, que – é uma pena – não consta na edição brasileira, Francis descreve esse achado como um texto de difícil leitura, “escrito em estilo elíptico”. Essas ideias iniciais foram ampliadas e desdobradas no ensaio de 1844, no qual Francis vê em certos momentos um frescor e uma “falta de freios” até maiores do que em A origem das espécies.
Mas, desde 1842, os fundamentos da teoria já estão dispostos: assim como no livro, o texto que Darwin chamou de um “resumo a lápis” começa com a analogia entre a seleção artificial (aquela que os humanos fazem deliberadamente para criar variações) e a seleção natural. Darwin já tinha compreendido o mais importante, e passou essas quase duas décadas sobretudo aperfeiçoando a construção argumentativa, levantando os melhores exemplos e refinando as metáforas. O que eram frases vão se tornando páginas; o que eram seções, capítulos.
Nesse processo de evolução da escrita de Darwin, observamos, por exemplo, as transformações de uma metáfora – que, como por seleção natural, vai se desenvolvendo com o tempo e aprimorando suas características mais adequadas. Se, no primeiro texto, o registro geológico é descrito como “maços de folhas” que são “arrancados conforme a história direciona-se a seu fim”, em A origem das espécies o que lemos é que a “história do mundo” é escrita “em dialeto mutável”: “um ou outro capítulo esparso foi preservado e, em cada página, umas poucas linhas estão inteiras”.
Os termos selecionados por Darwin também se modificam e adaptam de acordo com suas necessidades: nesse primeiro momento, nos dois ensaios, ele começa a descrever a teoria da descendência supondo “um Ser imaginário”, “com penetração suficiente para perceber diferenças [...] que são imperceptíveis aos homens e com capacidade de premeditação que se estende sobre os séculos futuros para observar com cuidado infalível e selecionar”. Aos poucos, isso que ele inicialmente chamou de um suposto Ser vai ser substituído, simplesmente, por Natureza.
Já para explicar o mecanismo complexo de cada espécie, Darwin o compara, em 1842, com uma “obra de arte”. No livro, como mostra Francis, a analogia passa a ser com uma “grande invenção mecânica”. O que aqui é chamado de raça, lá vai se tornar variedade.
Nas margens dos textos, Darwin anota “muito hipotético”, “exemplo muito ruim” ou “Este é o Galopithecus? Eu me esqueço”. Ele está pensando – e nós, quase dois séculos depois, estamos observando as dificuldades e os ritmos desse pensamento. I think, “eu acho”, foi o que ele escreveu acima do primeiro esboço de uma árvore da vida, um rabisco num caderno em 1837. As grandes ideias se desdobram e ramificam lentamente, como as espécies. Só que, no caso de Darwin, praticamente todos os capítulos dessa história foram preservados.