Resenha Silvina Ocampo Bioy Casares Domínio Público via Wikimedia Commons set.22

 

Em uma de suas últimas entrevistas,[nota 1] Silvina Ocampo (1903–1993) investiga de quais maneiras o conto tornou-se, digamos, seu método narrativo preferido. De sua perspectiva, o conto é o gênero literário mais importante e encontra-se em um lugar de “superioridade”. A escritora argentina afirma que as narrativas curtas estiveram em seus primeiros momentos de leitura, na infância, e quando as ouvia, geralmente, gostava de corrigi-las, porque, segundo ela, muitas não tinham harmonia: “[...] e eu a buscava, intervindo no relato e corrigindo-o” (tradução minha). Em As convidadas, reunião de 44 textos breves publicada pela Companhia das Letras, com tradução de Livia Deorsola, está evidenciado como o seu método se relaciona menos com escolhas técnicas e mais com um tipo de texto que comporte o ritmo proposto por Ocampo; texto que funciona como uma espécie de engasgo, contornado por histórias de crianças amaldiçoadas, homens famintos por carne de gato e médicos torturadores. 

Nesse sentido, Ocampo se vale do conto, para além de suas preferências e lembranças de aprendizado literário, como uma possibilidade de encapsulamento que podemos encontrar nas narrativas breves. Em sua obra, a tal harmonia, tão procurada pela autora quando criança, está presente com o intuito de retenção do texto, como se as circunstâncias, os personagens ou os espaços estivessem em processos de suspensões diversas e, consequentemente, escondidos. É mais fácil notar um engasgo quando não estamos atentos e, assim, muitas vezes, temos o estopim do susto em nosso cotidiano; nesse movimento é que se encontra a operação criativa de Ocampo, disseminada por uma base que sufoca – no limite do necessário – a linguagem. Dessa forma, podemos observar o mistério que cresce em vários de seus contos como parte da cadeia rítmica que encontra produção fértil no conto e, respaldada por certa interdição, vai desaguar no oculto, nas sombras, no não dito.

Observa-se, por exemplo, neste trecho de Êxodo, a sua escolha por uma pontuação que limita as frases, deixando pausas conduzirem o clima de horror que cresce naquela cidade: “Aconteceu lentamente, mas eu percebi de modo sub-reptício. Às vezes observamos estranhos sinais na natureza, mas com tanta distração que não lhes atribuímos nenhum valor. As formigas tentavam abandonar a cidade. Os infinitos caminhos em zigue-zague que formavam se dirigiam para fora da cidade, e nenhum para dentro. Com outros insetos acontecia algo parecido embora menos evidente. As aranhas tinham abandonado suas teias; as lagartas, as folhas, deixando longos fios de baba”. Ocampo não permite que o conto continue seguindo solto, em debandada, com extensas descrições e fluxos de consciência – o que não significa uma suposta justeza objetiva, mas, sim, arremate que se faz nos sustos, no instante do horror comezinho.

Ao longo de sua carreira, Ocampo foi, de maneira constante, aproximada de nomes como Adolfo Bioy Casares (com quem foi casada) e Jorge Luis Borges, o que responde também à demanda editorial de classificar os seus livros em paralelo a grandes nomes – homens – da literatura argentina, porém, em relação ao seu texto, podemos deixá-la em contato com outras autoras que também empreenderam movimentos parecidos em relação não só aos textos curtos – poemas, contos, fragmentos –, mas também às temáticas dos cantos, do que não se vê em um primeiro plano, dos detalhes sombrios. Nessa chave, destaco as  uruguaias Marosa di Giorgio (1932–2004) e Amanda Berenguer (1921–2010), contemporâneas de Ocampo, e a também argentina Mariana Enríquez, autora da  biografia La hermana menor: Un retrato de Silvina Ocampo (2018). Assim, acredito, a partir de uma constelação de referências ampliadas, Ocampo abandona a alcunha de “esquisita”, e torna-se mais contista; brilha, acompanhada, em sua singularidade.

Essa atmosfera da rotina desagradável, do “mundo trivial transfigurado”, como disse Alejandra Pizarnik (1936-1972), pode ser vista no conto que dá nome ao livro, no qual a descrição de meninas em uma festa de aniversário toma o leitor quase como feitiço. Entre Alicia, uma criança precoce que “[...] usava um vestido de lã, bem justo, e um gorro tricotado com ponto de arroz, desses antigos, que estão na moda”, Livia, a exuberante, com um olhar que “[...] parecia iluminar e se apagar como o dessas bonecas que funcionam a pilhas elétricas”, Angela, uma garota distante e fria que não queria provar o bolo ou falar direito com o aniversariante, e outras convidadas, somos deixados, como leitores, em um lugar quase de abandono. Quem são essas meninas? Por que Lucio, o aniversariante, as convidou? E mesmo sem as respostas, as características e ações das personagens parecem sopros de angústias, breves bilhetes de desagrados para o futuro. Na entrevista mencionada no início deste texto, Ocampo se diz “fiel à imaginação”, mas, às vezes, pondera: se vê perdida nos detalhes. Me parece que é nessa errância onde o seu universo se sustenta, nos pedaços que extrapolam a imaginação e alcançam espaços cheios de vingança, remorsos, solidão e discreta exuberância.


NOTA

[nota 1] A entrevista foi publicada, pela primeira vez, no ano de sua morte, 1993, no La Maga. Ela está disponível no site do projeto La Insignia e pode ser acessada clicando aqui