Resenha Marie José Mondzain Frame de vídeo realizado pelo La Maison du Banquet des générations 2017 ago.22

 

Como escrever, e para quem escrever, diante do sentimento, a cada dia mais profundo, da inutilidade e da impotência dos gestos, em particular dos gestos de escrita? A essa complexa questão se dedica Confiscação: Das palavras, das imagens e do tempo [por uma outra radicalidade], extraordinário ensaio de Marie-José Mondzain (foto). Considerada uma referência fundamental do pensamento contemporâneo, a filósofa e diretora de investigação no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), em Paris, tem produzido trabalhos incontornáveis sobre o poder persuasivo das imagens, articulando os campos da estética e da ética. Neste livro, traduzido por Pedro Corgozinho e publicado pela Relicário Edições, Mondzain faz um apelo à reapropriação das palavras que expressam nossa potência de transformação do mundo, em especial a palavra radicalidade, devolvendo a ela sua beleza virulenta e sua energia política.

Numa época em que tudo soa falso, em que já não há mais tempo e nem paciência e as redes sociais substituem a poderosa realidade das ruas, a defesa da palavra e o cuidado nos usos da língua são vistos por ela como a condição do debate que permite e sustenta a vida política. Não se trata, contudo, de uma aposta ingênua na imobilidade, já que, segundo Mondzain, as energias criativas do saber e da arte não param de modificar a língua e instituir novos vocabulários. Trata-se de atentar para o colapso provocado pela inversão do sentido das palavras, que transformam em incredulidade e desconfiança todo desejo de crença num mundo compartilhado.

Se a palavra radicalidade foi resumida num léxico que designa apenas os gestos niilistas e as convicções fanáticas, levando a crer que bastaria uma estratégia de “desradicalização” para eliminar qualquer vestígio de violência, a intervenção filosófica de Mondzain na cena pública busca desfazer a confusão entre os extremismos e as ações transformadoras que recorrem à coragem das rupturas construtivas.

O mote da desradicalização faz referência a um conturbado debate ocorrido na França a partir de 2015, quando sociólogos/as e outros/as intelectuais foram acusados/as pelo Estado francês de desculparem a “radicalização” jihadista por intermédio de suas explicações sociais. A consequência desse pensamento foi a confiscação da radicalidade em benefício de um uso bélico e policial, associando-a ao exercício da violência.

Recusando-se a reconhecer a legitimidade dos sentidos produzidos pela ordem dominante, Mondzain contra-argumenta que, na situação atual, as convicções fundamentalistas de todos os tipos vêm preencher com palavras, imagens e promessas a miséria profunda do imaginário coletivo. É um problema eminentemente político, que alimenta o esgotamento imaginário de toda uma geração: “Os extremistas, de leste a oeste, são uma paródia trágica da exigência de sentido [...]”.

Não está em questão, portanto, ver traços de emancipação ou liberdade em atos de violência, mas de deixar de reconhecer neles qualquer tipo de radicalidade, uma vez que a psicologização exagerada do problema permite evitar ao máximo que se interrogue sobre a natureza do sistema político.


OUTRA RADICALIDADE

Aqueles que exercem o poder com desprezo a toda vida política transformam a radicalidade em inimigo a ser combatido na arena pública. Tudo é feito como se se tratasse de domesticar e integrar os ditos radicais a uma sociedade desprovida de qualquer horizonte.

Para entender a articulação do capitalismo com a confiscação da radicalidade, Mondzain considera que é preciso dar à questão da imagem um lugar decisivo no colapso político. Para tanto, retoma uma notável criação conceitual dos padres da Igreja dos primeiros séculos do cristianismo, analisada minuciosamente por ela em Imagem, ícone, economia: As fontes bizantinas do imaginário contemporâneo (Contraponto Editora). Em sua leitura, a estrutura capitalista é inseparável da retórica cristã que se encarregou de constituir a língua própria para a designação das relações do visível e do invisível, por meio de um império das visibilidades chamado por ela de “iconocracia”.

O cristianismo foi a primeira e única doutrina monoteísta a ter feito da imagem o emblema do seu poder e o instrumento de suas conquistas, graças a uma estratégia pedagógica de administração das paixões. Hoje, o poder dos dispositivos iconocráticos já não é monopólio do Ocidente cristão, mas está difundido em todo o planeta. E, como nos ensina Mondzain, aquele que se apodera das visibilidades é senhor do reino e organiza o policiamento dos olhares. É por isso que todo projeto despótico se dedica a se apropriar das imagens e das palavras.

Dessa forma, o campo sonoro ensurdecedor e a aceleração dos fluxos visuais são vistos pela filósofa como as ferramentas cotidianas das novas ditaduras, que, através da debilidade de nossas capacidades sensitivas, produzem um esgotamento dos recursos críticos. A ultrapassagem dos limites nos transporta para uma
zona de indiscernibilidade, totalmente distinta do lugar da indeterminação próprio à liberdade.

Na contramão dos esforços semânticos dos reformistas de esquerda, o ensaio de Mondzain nos alerta que é de um combate que se trata, de uma confrontação que deve assumir os riscos da imprevisibilidade dos movimentos sísmicos, já que sem coragem não há ética e nem política: “Todo mundo quer ‘sair da crise’. Nós devemos, ao contrário, com toda nossa força, resistir a essa saída negociadora e vergonhosa, pois ela pretende trazer a paz com a condição de oferecer e de reconhecer a vitória dos inimigos declarados da liberdade, e isso em nome de uma saída da crise. Não apenas não se deve sair da crise, mas é preciso, ao contrário, intensificá-la em sua radicalidade, de maneira a empregar todos os recursos criativos e a mobilizar todas as revoltas a fim de fazer surgir a figura de um outro mundo”.

A radicalidade não pode ser tratada como “doença dos outros”. Ao contrário, precisa ser encarada como uma potência que constrói a vitalidade de toda a comunidade, alimentada pelas discordâncias e pelos conflitos que formam uma vida política a um só tempo hospitaleira e antagonística. Sua confiscação é, portanto, a derrota das forças estruturantes do pensamento e da imaginação. Em lugar de desradicalizar, Mondzain considera que é preciso transformar a violência sem diminuir sua energia, fazendo surgir dela a exigência de emancipação inerente à juventude, assim como a todo sujeito cuja dignidade e cujos direitos são confiscados.

No entanto, se a filósofa afirma acreditar na força revolucionária da radicalidade, é sob a condição de renúncia a qualquer tipo de “luta final”. A liberdade não deve nunca tornar-se um reino, já que a energia libertária da revolução é sempre da ordem do devir. Esse é justamente o paradoxo constituinte da democracia.