Resenha José Luiz Passos Divulgação Festa Literária Internacional de Paraty via Wikimedia Commons

 

“Gosto, sim, de lamber minhas feridas”, diz Lucineide ou Lucy Inde-Sky para justificar sua “história com figuras”, uma sorte de volta às origens em que busca recuperar a vida da mãe, uma cantora de MBB – Música Bem Barata. Entre Los Angeles e São Paulo, num entre-lugar conflituoso e desconfortável como as quitinetes por onde passa, a narradora-imigrante para viver se desdobra em “hostess, photo shoot, serviço de intérprete e companhia para embelezar hall, salão de festas, feira de games, o que fosse”. Está às voltas, ao mesmo tempo, com o projeto de elaboração do álbum que dá título ao livro – Um álbum para Lady Laet –, apresentado por um dos personagens, o boxeur Pablo, no prefácio, ou melhor, no book trailer ironicamente manuscrito que abre a narrativa e busca lhe dar sentido.

O ponto de partida é uma foto emblemática na qual a mãe aparece deitada no colo de vários homens e que, segundo Saboia, o antigo empresário devastado por um câncer terminal, diz muito da personalidade da cantora e de sua filha. Estão postas as perspectivas abertas pelo novo livro de José Luiz Passos (foto acima), uma novela instigante, que tem precursores ilustres nos romances Onde andará Dulce Veiga? (1990), de Caio Fernando Abreu (1948-1996), e A estrela sobe (1939), de Marques Rebelo (1907-1973). O elemento diferencial é trazer à cena do texto as dificuldades ou impasses que a narradora enfrenta, como filha e imigrante, de dar andamento ao projeto biográfico em terra estrangeira.

O livro que se lê, na verdade, é uma live em que se tem principalmente o depoimento da autora, então de volta a São Paulo, sobre o trabalho já realizado, tornando mais misterioso ainda o que ocorreu com a cantora, como se a vida dela fosse um roman noir cujos bastidores em parte revelados vão sugerindo, aos poucos, sua derrocada. A mesma sensação que se tem na Los Angeles por onde se move Lucineide e por onde caminha ouvindo músicas da mãe, como no mítico e outrora requintado Sunset Boulevard, hoje dos turistas, “dos antigos cinemas convertidos em igrejas e lojas de bricabraque”. Ou diante do “letreiro chique” de Hollywood, “barragem, triste e linda”, signo mais de exclusão que de entretenimento.

A “música barata” visita e conduz narrativa e narradora, ou seja, dá ao texto que se vai ler ou postar uma dicção de “lúmpen-rock”, que esvazia o significado de celebridades hollywoodianas como Marilyn Monroe, espelho em que Lady Laet se mira – e se perde, ao repetir o bordão de ser “a-pior-memória-do-planeta”. Memória também vazia, portanto, como a da filha que luta para dar conta do “assassinato” (a palavra é de Saboia) da carreira da mãe, “Marilyn suburbana”, na biografia planejada, por isso também vazia – ou repleta – de sentidos possíveis. A solução às vezes toma a forma do delírio, como a visão de uma grande enchente imaginária que, a partir do famoso letreiro de Hollywood, tudo inunda e tem Godzilla como o salvador que escolhe quem e o que salvar, à maneira de um filme-catástrofe que não para de se repetir.

Biógrafa e biografada se confundem como se o autor apontasse novas possibilidades de “grafia de vida” (a expressão é de Silviano Santiago) por interposta figura, ao ampliar o alcance da foto e das subjetividades que aí se mostram na sua superfície e superficialidade. É como se ao falar da mãe a retratista a tirasse do foco principal ou a desfocasse propositalmente, como as imagens plásticas que o livro apresenta borradas (criadas pelo autor), sem traços muito nítidos de diferenciação entre si. Afinal, quem é Lady Laet?

Os espaços também se superpõem e Lady Laet aparece, então, “amando LA nas grandes vilas e subúrbios de São Paulo”, o que confirma sua natureza fantasmática, a nos assombrar como promessa de uma vida que não foi nas periferias do mundo, mesmo lá no centro ou aqui nas margens. Estar por dentro e por fora a um só tempo desse mundo disjuntivo parece aludir à situação do artista ou do escritor contemporâneo, que vai paulatinamente se mostrando para nós.

Sua atuação, e nisso o livro de José Luiz Passos é exemplar, parece ser a metáfora multifacetada do enfrentamento daquilo que restou como única forma de fazer arte quando esta parece ter perdido seu valor social e político comunitário. Uma ética do artista, ou melhor, do escritor-artista, assume então o protagonismo nas manifestações verbovisuais do espaço digital da atualidade e das páginas impressas do livro lido e visto. As imagens que dialogam com o texto e o suplementam, sombrias e inusitadas, abrem novas possibilidades de leitura ao exprimirem uma visão “malcomportada” do real que escapa à figuração ao vivo que temos na tela – anagrama de Laet – que o livro se tornou. E que por aí nos dá a dimensão rigorosa da tragédia que vivemos.