“‘O Deus Branco está aqui’, canta a mandíbula. [...] ‘Dê a ele um gole do seu sangue, Analía.’ [...] Seu sangue, que tem gosto de linguagem’”, diz Annelise durante o ritual macabro que realiza junto com as amigas em um quarto branco de um prédio abandonado. Tal cena dá o tom de Mandíbula, romance de Mónica Ojeda, com tradução de Silvia Massimini Felix. O título foi lançado pela Autêntica Contemporânea, novo selo da Editora Autêntica e é o primeiro em prosa da equatoriana no Brasil. Antes disso, em 2021, a Jabuticaba havia lançado um livro seu de poemas, História do leite.
O enredo tem algo de thriller. Duas garotas de classe alta, muito unidas desde a infância, estudam juntas no Ensino Médio e gostam especialmente de literatura de terror. Annelise e Fernanda ouvem Taylor Swift e leem creepypastas, que são histórias de terror espalhadas pela internet, que acabam viralizando. Ambas experimentam o desamor de suas mães desde cedo e acabam encontrando afeto e apoio uma na outra, fazendo-se “irmãs”, “gêmeas”, “siamesas unidas pelo quadril”, palavras que usam para nomear a identificação absoluta que sentem. Com o avançar da adolescência, elas e um grupo de amigas da escola, formado por Ximena, Natalia, Florencia e Analía ocupam um prédio abandonado no qual passam a se encontrar diariamente. Porém, passada a euforia inicial do evento que as fez sentirem-se destemidas e especiais por possuírem um segredo à sua altura, não sabem muito bem o que fazer daquele lugar. É aí que o espaço vazio e a vida adolescente, que têm muito de devir, convergem em uma espécie de invocação de acontecimentos funestos.
A história é contada in extrema res, expressão latina que define uma história que começa pelo clímax, o que faz que tudo o que é contado a partir dali sirva para que o leitor conheça finalmente as circunstâncias que desembocaram na cena de maior intensidade, no caso, sempre com a expectativa de um mal que espreita. Em Mandíbula, esse recurso cria uma sobreposição temporal de ritmo frenético, fora de ordem e de gêneros variados. Diálogos em discurso direto, monólogos com o psicanalista, versos e um predominante narrador onisciente criam um efeito de simultaneidade que confere à narrativa um clima ofegante cujo ritmo aumenta conforme se desenvolve.
A cena inicial: Fernanda abre os olhos e percebe que está presa, amarrada, em uma cabana no meio da floresta. Ela foi sequestrada por sua professora de Língua e Literatura do Colégio Bilíngue Delta, Miss Clara. Nota também que há um revólver sobre a mesa. Entre a cena inicial e a final, que são a mesma, há um longo desenrolar de acontecimentos perturbadores na relação de Miss Clara com sua mãe e com suas alunas e, destas, com as respectivas mães e entre si. Todo o arco narrativo se desenvolve de modo a explicar o que levou Miss Clara a sequestrar sua aluna, o que desenha um dos elementos mais importantes do livro: a ideia de retorno.
Toda essa história de horror (porque, diferente do terror, o horror não é uma situação assustadora, mas o contato com o desconhecido) mobiliza temas caros à sociedade atual, como a maternidade, a psicanálise, a adolescência, os transtornos mentais, o corpo feminino como ente público, a sexualidade reprimida, o sistema de ensino, a internet etc. tudo narrado por uma linguagem que dá sinais de estar perdida, de ser invadida.
Assim, a negação do amor materno na vida das personagens principais do livro também se manifesta na forma de desconexão com a língua materna. Nos termos do que Jacques Derrida aponta em O monolinguismo do Outro, fica patente o cruzamento da linguagem (como língua, idioma e dialeto) com os processos de construção de experiência subjetiva, de modo que linguagem e vida se amalgamam, tornam-se uma coisa só. Segundo o autor, sem língua materna não há pertencimento, o que fala de uma condição humana de privação e de desterro absolutos.
Além disso, as mães de Fernanda, Annelise e Clara lhes legaram uma herança existencial pegajosa, da qual não podem se livrar: a culpa. São vidas de conflito entre desejo e culpa, cuja saída só se apresenta pela via da psicose. Também de suas mães vêm traumas que se manifestam em seus corpos, tanto em forma de doença, como de gozo, de pulsão e de desejo. Cada personagem à sua maneira alimenta-se de sua mãe, mas também a vomita, em uma escrita que carrega a viscosidade dos fluidos e das secreções corporais nesse retorno compulsivo. O impossível para as três é separar-se da mãe. É a impossibilidade de separação que faz da ideia de retorno um eixo fundamental aqui, um retorno de sangue.
Podemos destacar do diálogo da cena do ritual transcrito no início deste texto especialmente a frase: “Seu sangue, que tem gosto de linguagem”. Nela, acontece uma inversão interessante: Annelise não atribui à linguagem o gosto de sangue, mas atribui ao sangue o sabor de linguagem. Essa inversão pode falar de um clima próprio da escrita contemporânea, em que a linguagem, mais propriamente a literatura, exime-se do papel de redimir a realidade, de costurá-la por meio de uma representação, mas produz uma continuidade entre os sujeitos e as experiências fraturadas da contemporaneidade com uma escrita que não se responsabiliza por resolver o mundo esteticamente, apenas por participar dele, abraçando as fraturas, como postula Florencia Garramuño no ensaio Os restos do Real.
Os leitores brasileiros que já entraram em contato com o texto de Mónica Ojeda devem ter tido a sensação de encarar um universo desconhecido. Por si, esse frescor seria razão suficiente para que a autora tenha construído uma trajetória importante e se tornado um nome de peso na literatura latino-americana contemporânea. No entanto, o valor do seu texto extrapola a demanda por novidade, tão própria da lógica de consumo, ele também vem da perspicácia no uso da linguagem com que tece a narrativa, entrelaçando questões difíceis e fundamentais da contemporaneidade.
Além disso, sai-se com a gratificante impressão de que é possível não responder aos arquétipos maléficos da “literatura feminina” e de suas supostas questões essenciais. Trata-se de uma escrita segura de si, mas feita por diversão. A produção literária de Mónica Ojeda tem sido lida na chave do “Gótico Andino” e, mesmo que esse tipo de rótulo atenda mais a uma demanda mercadológica do que dê conta de questões literárias, pode ser interessante pensar em como se manifesta e como é recebido o horror na escrita nas latitudes onde mais se convive com a violência, com desaparecimentos e com crimes sem solução, como é o caso do Equador, mas também de grande parte da América Latina. Mandíbula não perde de vista quanto do medo meramente estético que se atribui ao Gótico ganha novas formas em circunstâncias, nas quais a violência é institucionalizada, em um conto de horror infinito cujo livro não se pode fechar.