Logo que recebeu o Prêmio Camões, a mais importante láurea das literaturas lusófonas, Paulina Chiziane gravou, ao pé de uma fogueira, um vídeo que imediatamente viralizou nas redes sociais, não só pela novidade do assunto, mas principalmente pela simpatia contagiante da escritora de fala mansa e sorriso largo, dona de uma linguagem sedutora como a de seus livros. Primeira mulher a publicar um romance na sua terra natal, Moçambique, em 1990, e primeira mulher negra a ganhar o cobiçado prêmio, a autora incorpora o lugar de narradora de uma comunidade de destino através de uma perspectiva feminina, cuja atualidade revela-se, em muitos pontos, revolucionária, como fora sua atuação nas guerras pela independência de seu país.
A dimensão contemporânea de sua escrita, voltada para a heterogeneidade cultural moçambicana, cria formas de expressão muito especiais, que buscam tornar visível uma subjetividade que se expõe em todas as suas contradições e cujo fim resulta no rompimento do bloqueio histórico e social imposto às mulheres, “condenadas a viver nas margens do mundo”. Esse lugar de fala político, no sentido a um só tempo mais amplo e mais particular da palavra, constitui-se por analogias, imagens e metáforas que se servem de terra, bichos, água, nuvens, sol, pedras e plantas como fonte inesgotável de conhecimento e de criação linguística, responsáveis por um saber nascido da articulação solidária entre natureza e cultura – “Dai-nos força para avançarmos ao lado da natureza”, diz uma prece da narradora.
Em Niketche (originalmente lançado em 2002), que leva o subtítulo inusitado de uma história de poligamia, a postura narrativa de Chiziane como romancista – ou contadora de histórias, como ela prefere – mostra-se em toda sua extensão ecológica, o que dá ao livro feição muito original, a exemplo da descrição da mulher que se confunde com a terra – “As mulheres são sombras doces, quando a rega é boa. Quando o solo é húmido, elas oferecem ao mundo um verde mais macio que o veludo. Que a seda”. A imagem de fertilidade, por sua vez, é imagem simétrica à da terra natal: “Ah mãe África, mãe nua! Como pode a nudez das tuas filhas ser a mais escandalosa que a tua, mãe África?”.
A imagem já gasta da terra-mãe é redimensionada e aponta para novos caminhos de significação por meio de um processo de desnudamento – “(n)udez inspirando voos maravilhosos e catástrofes apocalípticas” – que vai do corpo individual das mulheres ao corpo coletivo do povo africano, “povo nu”, “Povo de tangas, de pobreza”, até atingir o ponto no qual niketche, no seu significado de dança de amor, se realiza como operadora de afetos e paixões por avanços e recuos do mais particular ao mais geral. Assim é que o tema do livro, a poligamia masculina, se propõe como campo de forças em que se joga o destino das personagens e, mais do que isso, o sentido de suas ações, bem como o da vida e da morte.
Rami, a narradora, é a esposa oficial de Tony, que tem outras mulheres com as quais também tem filhos, situação que se apresenta como símbolo imemorial de masculinidade. Resolve, então, conhecer as outras parceiras com quem é obrigada a compartilhar o marido e, a partir daí, passa a colocar em xeque a situação em que se encontram, num embate difícil contra a tradição arraigada e aceita socialmente – “uma só família, com várias mulheres e um homem, uma unidade, portanto”. Implodir essa unidade pouco a pouco é a tarefa a que Rami se entrega obstinada e sem sossego.
“A minha vida é um rio morto [...] Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma”, declara a narradora logo no início do relato. A escrita, mais do que busca do que se perdeu, é uma maneira de dar forma à perda e torná-la comunicável pela palavra urdida como força propulsora de um futuro possível para a mulher e a África. Tarefa feminina por excelência, supõe um jogo amoroso com a letra envenenada – “Mulheres desamadas são mais mortíferas que cobras pretas” – que a escrita usa como ato estratégico de insubmissão.
Abrir espaço para quem não tem fala numa língua outra, a língua que o colonizador deixou como herança e estigma, eis a tarefa da escrita. Passo a passo contaminada pela palavra feminina e sexualizada de diferentes etnias locais, a luta diuturna com ela resulta na conquista – ou fundação? – de um novo território, conflagrado sem dúvida, mas obrigado a abrir-se para quem se propõe a enfrentá-lo à sua maneira: “Nós apertamos o cerco e o rodeamos de carinho. Sufocamos o homem de amor”, declara Rami. O enfrentamento amoroso detona antigas formas de subserviência e instaura, pela reversão mimética, formas de rechaço orientadas para a transformação do papel social da mulher e, por ricochete, da sua liberação de modos de vida coercitivos antes vigentes. Levada a bom termo por meio de uma literatura de alto nível artístico, a missão que Paulina Chiziane abraçou, enfim, se cumpre com grande sucesso e a autora pode então mandar tudo mais para o inferno.
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