Resenha Julia Dantas Davi Boaventura Divulgação

 

Há um apartamento semivazio, há um homem que nele se instala em condições improvisadas e, ali dentro, há uma tartaruga – esquecida, abandonada? – que, de imediato, confunde e paralisa aquele que ingressa na casa emprestada. O argumento, entre insólito e minúsculo à primeira vista, coloca em movimento os passos errantes das gentes e – dos bichos – em Ela se chama Rodolfo, o segundo romance da escritora gaúcha Julia Dantas (foto).

“Tapa o ralo com o dedão e abre a torneira. A pia se transforma em represa. Como ressuscitada, a tartaruga estica mais as patas e o pescoço e nada em círculos até deslizar, calma e certeira, para o espaço côncavo da louça destinado aos sabonetes. Tem o tamanho de um sabonete. Murilo se tranquiliza. Deixa quieta a tartaruga e sai pelo Partenon em busca de algum mercado. Precisa se aclimatar ao bairro. Voltará com panos de limpeza, desinfetantes, uma tampa de ralo e um pé de alface”, lemos que no que pode ser uma passagem de inauguração, a que delimita o ponto de partida de uma intimidade improvável.

Rodolfo, no caso, é como se chama o pequeno animal deixado para trás em um apartamento de Porto Alegre no começo de um verão que, como todos os verões da cidade, entrega aos seus habitantes um rosário sem fim de tardes asfixiantes, tempestades abruptas e noites mornas. E quem adentra o apartamento emprestado, com móveis alheios e vários espaços por preencher, é Murilo, o protagonista humano da narrativa, homem de 30 e poucos anos que está às voltas com uma série de desencontros – no amor, no trabalho, na relação com a cidade que habita desde que nasceu.

Murilo trabalha como porteiro no turno da noite de um edifício comercial; acumula plantões e noites de vigília em um prédio quase vazio com a ilusão de juntar dinheiro e levar adiante uma viagem há meses planejada. Pretende, ao menos é o que diz a si mesmo, ir ao interior de Goiás, para onde viajou – sem planos precisos de retorno – a namorada Gabbriela, moça impetuosa e dada às modificações bruscas de desejos e intenções. Enquanto imagina o difuso reencontro e trata de conciliar o sono atormentado, Murilo se move por uma rotina que agora parece interceptada pelo réptil que rasteja lentamente por uma bacia no chão do apartamento localizado no bairro Partenon.

A busca pelas origens da tartaruga e pelos rastos da antiga moradora e provável dona do animal faz com que Ela se chama Rodolfo ganhe os atributos da errância e que Murilo vague por uma cidade que, embora seja o cenário dos dias do passado e do presente, agora parece ganhar novo mapa. Ele começa a corresponder-se com Francesca Ramos, a ex-moradora do lugar, que o convoca a visitar amigos e conhecidos que poderiam assumir os cuidados de Rodolfo. Com mensagens que assumem o prazer da narração e evocam outros tempos e lugares, Francesca entrega as coordenadas para um Murilo que se inquieta com os artifícios da literariedade.

As cartas de Francesca levam Murilo a visitar a região das ilhas de Porto Alegre, território em que construções recentes e opulentas se mesclam com quadras sem asfalto e casas improvisadas; ali, um pescador taciturno e quase mudo entrega sua justificativa para não receber o diminuto quelônio. Mas a correspondência não cessa e os endereços se multiplicam: Murilo busca um bar quase invisível numa das ladeiras do bairro Tristeza, bate à porta de uma casa de classe alta no Três Figueiras, persegue um açougue que se esconde numa galeria da zona norte e adentra a Vila Cruzeiro em busca de uma residência indicada pela elíptica Francesca, que, à distância, determina carinhosamente a cartografia crescente da trama.

As andanças, que Murilo pratica com desordenada paixão, tornam a cidade até então torporizada num sono de gosto amargo como que outra vez desperta, mesmo em suas falências e em seus gritantes contrastes de violência e confusão. Também a vida íntima do protagonista se adensa à medida que ruas e calçadas se alargam. Murilo passa a dividir o apartamento com o recém-chegado Camilo, que aparece de súbito no apartamento que um dia fora habitado por Francesca, e se reaproxima da irmã, Lídia. Ambos passam a fazer parte das buscas, que, se em um primeiro plano se dão para a devolução do animal, para Murilo também são movidas pela atração sem nome que sente por Francesca.

Os versos de Antonio Machado evocados pela voz do narrador (caminante, no hay camino, el camino se hace al andar) parecem retumbar como um refrão que estimula a narrativa sempre mais e mais, mesmo que os périplos – todos os personagens intuem ou pressentem – se mostrem fracassados desde o começo; talvez não haja lugar ideal para uma tartaruga doméstica, talvez não seja possível reencontrar Gabbriela no ponto em que se deu a separação, talvez Francesca não exista, ao menos não como Murilo imagina, do outro lado da correspondência. Ainda assim, em Ela se chama Rodolfo algo teima em dizer ao leitor que haverá algum caminho com tanto e tão insistente andar.

Não só nos deslocamentos o romance de Julia Dantas opera uma forma de multiplicação, mas também nos diferentes registros que se infiltram na narrativa. A narração é recorrentemente atravessada pelas cartas trocadas entre Murilo e Francesca e por fragmentos que o protagonista escreve nas horas vazias do trabalho, entre uma dobra da madrugada e o final do expediente, trechos que, anotados no celular, serão depois compartilhados com a amiga distante. Há, ainda, bilhetes que se escrevem para a cada vez mais longínqua Gabbriela, mensagens que se escrevem mais além da expectativa real da interlocução.

De aparência amena e de graciosa trama, o romance de Julia Dantas também trafega por zonas doloridas e opacas, por traumas que se confessam nos estertores do verão e por histórias que, se descobrirá, seguirão sem resolução possível. Nas brechas de uma cidade que oscila entre firmar-se como inacessível e se revelar, por um instante breve que seja, reencontrada, passeiam os amantes perdidos, os que escrevem as últimas cartas e uma tartaruga acomodada em uma caixa.