Resenha Victor Squella Clarissa ONeill Divulgação

 

“Da mesma maneira como os gregos/ faziam suas esculturas. De matéria/ rígida, para o prazer —/ É assim/ que me lembro, você deitado/ ao meu lado com as mãos distraídas/ dentro da água. Suas costas,/ um longo pedaço de mármore,/ refletindo a cor dourada da hora.”

Esses versos encenam o devaneio que sintetiza a poética submersa de Sair da piscina (Edições Macondo), segundo livro do poeta carioca Victor Squella. Para além da imagem ou da metáfora, o devaneio tem a potência específica de apontar para o gesto de escrita do autor, em que é permitido boiar sem rumo por entre as formas corpóreas, pelas mitologias e pela língua, infindavelmente. O devaneio é “a ponte, a janela aberta a toda ficção”, como escreve Alfredo Bosi (1936-2021) em O ser e o tempo da poesia (1978). “Devanear é comprazer-se em que o espírito erre à toa e povoe de fantasmas um espaço ainda sem contornos”, diz o crítico.

A travessia da obra começa e se encerra sob a figura de Telêmaco, que dá título a duas passagens do trabalho. Telêmaco é o filho de Ulisses (Odisseu) e Penélope, que passou a vida buscando o pai. Torna-se alguém perdido, à procura de uma direção divina para seus devaneios sobre o que aconteceu, sobre quem seria essa figura paterna e quem seria ele próprio. Recorrente na literatura, como uma assombração, Telêmaco também é o título do capítulo de abertura de Ulysses (1922), de James Joyce (1882–1941), por exemplo. Essa abertura apresenta Stephen Dedalus – não mais o jovem promissor de Um retrato do artista quando jovem (1916), mas um Telêmaco moderno enlutado pelos pais. Entre os contemporâneos, o poeta vietnamita-americano Ocean Vuong reencena o personagem na abertura do seu Céu noturno crivado de balas (2016): Para beijar qualquer amante na despedida noturna:/ o modo como selo os lábios do pai/ como os meus/ & começo/ a fiel tarefa de me afogar, escreve.

A escolha de iniciar a obra com Telêmaco é importante para entendermos a lírica submersa criada por Squella – não apenas por seus signos (o mitológico, divino ou o mar, por exemplo), mas também pelo fato de o poeta evocar essa figura errática, condenada sempre a devanear a existência a partir de seu pai. Ao escolher Telêmaco como estandarte, Victor dispõe a própria obra a esse escafandrismo de si.

Além da, digamos, “preocupação grega”, há em Sair da piscina uma preocupação intrínseca à língua. Os desejos são também tratados como fetiches da língua, mesmo que ela, aqui, seja sempre a “primeira coisa a ser sacrificada/ para os deuses da casa”, como se o poeta estivesse sempre preparado para assassiná-la e revivê-la em um trabalho de rascunhos, repetições e tentativas.

No fragmento “Antes ainda existia/ algo ali. O início nunca/ inaugura algo inédito/ repete. A repetição/ com alguma/ variação é o que/ chamamos descoberta/ começo — [...]”, Victor acentua como a descoberta, na obra, vive na repetição. Esta seria uma forma de matar o início e dessacralizar o inédito. Em outro momento, a repetição se desdobra nos versos: “variação i/ Rejeitar da concha,/ a firmeza por instinto — É assim que olho/ para tudo. Procurando/ a maciez/ de dentro.// variação ii/ A pérola;/ esconde-se/ na língua”. A objetividade da imagem, espécie de culminância do processo de construção do poema, é o que irrompe a “casca do mundo” e transforma a imagem em síntese do processo poético. Entre essas investidas, a própria ideia do título do livro pressupõe e omite, ao mesmo tempo, um retorno, exposto nos versos: “Estava sempre dentro ou fora. Na piscina eu o via/ entrando e saindo várias vezes.”

A lírica de Sair da piscina parece integrar conceitualmente o mesmo processo criativo da tradutora, poeta e ensaísta Anne Carson e da poeta vencedora do Nobel de Literatura de 2020, Louise Glück, por exemplo. Ambas vão ao cerne da cultura ocidental e a tornam individual. A marca de Carson aparece inclusive em citação direta na epígrafe do livro: Grief and rage — you need to contain that, to put a frame around it, where it can play itself out without you or your kin having to die. There is a theory that watching unbearable stories about other people lost in grief and rage is good for you — may cleanse you of your darkness.[nota 1] O trecho é de Grief lessonsFour plays by Euripides (2008), livro em que Carson elabora o desejo como um líquido. Como escreveu Julia Raiz em texto neste PernambucoGrief lessons associa “uma carga erótica, passando entre as pessoas, com água sendo derramada de um vaso a outro”. Esse mesmo líquido é a correnteza que atravessa Sair da piscina, que cria uma relação a partir de um destino e desejo passado de um corpo ao outro, de relação de perda e toque, de translucidez e corpo, do épico universal com as fraturas pessoais.

Ainda em semelhança a Anne Carson, Victor deixa fluir a reimaginação de figuras clássicas como Electra, Ifigênia ou Apolo com suas preocupações da língua, do corpo e da poesia. “Um pequeno altar da mitologia/ própria de sua psiquê”, escreve na segunda parte do livro. Como se cada um desses arquétipos fossem personagens tanto de uma tragédia pessoal quanto do âmbito da tradição mais distante. Algo que, por vezes, consegue soar irônico em plena colisão do olhar contemporâneo e coloquial com a pompa da tradição cultural grega.

Expondo o próprio processo de escrita, o segundo livro de Victor Squella parte do devaneio para adentrar um universo entre o próprio poeta e seus mitos, e as ficções possíveis da língua. Um trabalho dialógico que, de forma voluntária, brinca com a tradição sem medo de entendê-la como parte de si. Sair da piscina é uma forma de olhar para o mesmo rio, na consciência de que suas águas são outras. E, continuamente, sempre serão outras.

 

NOTAS

[nota 1]. Em tradução livre: “Pesar e fúria – você precisa contê-los, para enquadrá-los, onde você pode jogá-los sem que você ou seu parente precisem morrer. Existe uma teoria de que acompanhar histórias insuportáveis sobre outras pessoas perdidas em pesar e fúria é bom para você – elas são capazes de livrá-lo de sua escuridão”.