Resenha Combahee River Terroristas del Amor A Bolha Editora

 

Há poucos anos, em 2019, ao menos duas revistas acadêmicas brasileiras publicaram traduções do Manifesto do Coletivo Combahee River, 42 anos após sua realização nos Estados Unidos, em 1977. Como escreveu Keisha-Khan Y. Perry, professora da Universidade da Pensilvânia, em artigo publicado no site da organização Geledés (em julho de 2020), a tradução para o português era uma contribuição oportuna à busca coletiva por “novos modelos de transformação social que levem a sério a maneira como as mulheres negras interagem e trabalham para transformar múltiplas opressões”, sobretudo no contexto de um governo de extrema direita no país.

O Coletivo Combahee River, grupo revolucionário de feministas negras, em sua maioria lésbicas, foi uma das mais influentes organizações políticas surgidas a partir dos movimentos de libertação dos anos 1960 e 1970. Seu nome fazia homenagem a uma bem-sucedida incursão conduzida pela abolicionista Harriet Tubman no Rio Combahee, na Carolina do Sul, que em 1863 libertou centenas de pessoas escravizadas.

Em seu quadragésimo quinto aniversário, o Manifesto volta a circular entre nós por meio da coletânea Como nos libertamos: Feminismo negro e o Coletivo Combahee River, publicada pela editora A Bolha, com tradução de floresta. Editada em 2017 por Keeanga-Yamahtta Taylor, professora da Universidade de Princeton e autora de #VidasNegrasImportam e libertação negra (editora Elefante), a coletânea reúne, além do Manifesto e da introdução de Taylor, entrevistas com Barbara Smith, Beverly Smith e Demita Frazier — três das fundadoras do Coletivo, com Alicia Garza — cocriadora do #BlackLivesMatter, e uma inspiradora fala da escritora e historiadora Barbara Ransby, proferida na conferência Socialism 2017, em Chicago; todas elas refletindo sobre o legado das contribuições pioneiras do grupo e seu impacto nas lutas atuais.

As integrantes do Comabahee River encontraram suas origens coletivas na realidade histórica da luta contínua de vida e morte travada pelas mulheres afro-americanas por sobrevivência e liberdade. “O feminismo negro contemporâneo é fruto de incontáveis gerações de sacrifício pessoal, militância e trabalho de nossas mães e irmãs”, declara o Manifesto.

A política feminista negra se desenvolveu em conexão com a segunda onda do movimento de mulheres nos Estados Unidos, no final dos anos 1960. Mas, como afirma o texto, tanto as forças reacionárias externas quanto o racismo e o elitismo dentro do movimento serviram para ofuscar a participação das mulheres negras.

O feminismo negro encontra ainda uma óbvia conexão com os movimentos pela libertação negra ocorridos no mesmo período. No entanto, uma certa “desilusão” — no termo das autoras —, oriunda das vivências dentro destes espaços, sobretudo pela forma como os papéis de gênero eram distribuídos, conduziram-nas a desenvolver uma política que combinasse a um só tempo antirracismo e antissexismo, e, posteriormente, uma abordagem crítica ao heterossexismo e à opressão econômica sob o capitalismo. Outro fator importante na política do Combahee River foi seu posicionamento internacionalista, reflexo do engajamento de suas participantes em ações antiguerra. “Nos considerávamos como mulheres terceiro-mundistas. Nos víamos solidárias e em luta com todas as pessoas terceiro-mundistas do mundo. E também nos percebíamos colonizadas internamente, dentro dos Estados Unidos”, afirma Barbara Smith em entrevista à Taylor.

Dividido em quatro partes, o Manifesto tem início com uma apresentação da gênese do feminismo negro. Em seguida, esboça e defende as ideias do Combahee River, ou seja, a seara específica de sua luta política. Num terceiro momento, aborda os problemas organizacionais enfrentados pelas feministas negras, incluindo uma breve história do Coletivo. Por fim, aborda questões e práticas do feminismo negro, apontando para projetos futuros.

Ao propor uma análise que leve em conta a materialidade das vivências cotidianas, o texto articula, de maneira sofisticada e bastante corajosa, a experiência de vida das mulheres negras com uma leitura crítica da sociedade, rejeitando a subalternidade, por um lado, e os pedestais e realezas, por outro: “Sermos horizontalmente reconhecidas como humanas é o suficiente”, afirmam.

Segundo o Manifesto, a libertação de todas as pessoas oprimidas exige a destruição dos sistemas político-econômicos capitalistas e imperialistas. Suas autoras se apresentam como socialistas, defendendo que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo daqueles que trabalham, e não em prol do lucro dos patrões. Ainda assim, elas não estavam convencidas de que uma revolução socialista, que não fosse também uma revolução feminista e antirracista, garantiria a libertação de pessoas como elas: “Embora concordemos essencialmente com a teoria de Marx, quando aplicada às relações econômicas muito específicas que ele analisou, nós sabemos que essa análise deve ser ampliada de forma que nós possamos compreender nossa situação econômica específica enquanto mulheres negras”.

A articulação do Coletivo já era interseccional, antes mesmo de o termo ser conceituado por Kimberlé Crenshaw em 1989. Por isso, a grande contribuição do Manifesto é atentar para a simultaneidade das opressões, negando-se a sacrificar uma determinada luta em benefício de outras.

O foco sobre a própria opressão é analisado a partir da ideia de “política identitária”, expandindo o princípio feminista de que o pessoal é político. Mas, ao contrário dos sentidos comumente atribuídos ao conceito, a leitura do Manifesto evidencia o caráter materialista e antiessencialista da proposta, ao menos em sua origem. As participantes tinham total consciência de que a identidade não pode ser encarada de maneira determinista, já que, frequentemente, é um constrangimento imposto pela opressão. Dessa forma, o projeto defendido por elas deveria levar à construção de coalizões políticas regidas pela solidariedade.

O Manifesto do Coletivo Combahee River é um documento histórico inestimável, que dá testemunho de um tempo de efervescência de ideias e práticas radicais. Como afirma Demita Frazier em sua entrevista: “Eram os anos [19]60. Tudo estava sendo questionado. As coisas estavam sendo analisadas de uma forma muito séria. E o pensamento negro radical estava florescendo”. Ainda assim, não há razões para ler o texto de maneira nostálgica, pois, como sublinha Frazier, se o Manifesto mantém sua força, é justamente porque as mulheres negras ainda não estão livres.

Em tempos de crescentes investidas supremacistas e neopatriarcais, as ideias precisam urgentemente voltar a incendiar a imaginação política e pôr em prática novas revoluções. Ou, em outras palavras, as ideias precisam voltar a ser perigosas. Afinal, como já sabiam as autoras em 1977, se as mulheres negras fossem livres, “isso significaria que todas as outras pessoas teriam de ser livres”, uma vez que tal liberdade demandaria a destruição de todos os sistemas de opressão.