Karen sai em uma manhã nublada para correr no Aterro do Flamengo enquanto Marcos e Vera discutem no carro que vai em direção ao cemitério e Bruno observa Edgar subir as escadas do trampolim e se preparar para pular. Essas e outras situações muito próximas da vida cotidiana dão início aos contos que compõem Formigas no paraíso, livro de estreia do escritor Mateus Baldi, publicado pela e Editora Faria e Silva em março deste ano.
Enquanto escrevo esta resenha, penso na expressão que o jornalista Arthur Dapieve usa para comentar o livro na contracapa como um bom ponto de partida. Para ele o livro seria um “relicário de vidas imaginárias”. De fato, talvez aquilo que mais chame a atenção ao longo da leitura, e que permanece depois que o livro termina, seja uma impressão de extremo cuidado do escritor com a elaboração das diferentes personagens.
São várias, por exemplo, as personagens femininas que ocupam o centro de alguns dos melhores contos, que passam a impressão de terem histórias complexas para além das poucas páginas em que aparecem. O estilo de Baldi parece ganhar força principalmente nos textos um pouco mais longos, nos quais é possível elaborar e relacionar as subjetividades das diferentes personagens, estabelecer as suas maneiras peculiares de pensar, viver e falar. Ou também em contos em que há uma sutil experimentação com o modo da escrita que interfere na maneira como as histórias são contadas.
O primeiro conto do livro, De cair a chuva, é um que se destaca. Nele, acompanhamos Karen, mãe de um filho de oito anos com pneumonia que sai para correr de manhãzinha enquanto o marido está em uma viagem de trabalho. Ao longo da leitura, a sensação é de que a escrita começa a tomar emprestado para si o próprio ritmo da corrida, ao mesmo tempo em que mergulhamos cada vez mais no fluxo de pensamentos e sensações da personagem. O ritmo é um elemento muito importante e facilmente notado desde as primeiras páginas do conto em trechos como: “Dá uma última espiada no filho. Oito anos. Pneumonia. Emergência do hospital. Rodrigo em Chicago. Mensagem rápida – Como tá aí? Dois tiques. Zero resposta. Fuso horário”. As frases entrecortadas, muitas delas sem verbos, formam uma sequência de imagens que atravessam a mente de Karen antes de fechar a porta para correr. No entanto, já aqui neste primeiro conto, é possível notar que não se trata de uma experimentação formal vazia, mas de uma tentativa de se aproximar das personagens de todas as maneiras possíveis em um espaço relativamente curto.
Um outro conto que utiliza essas sutis estranhezas da forma é o Tigre-de-Bengala, no qual, ao em vez de uma sucessão cronológica de eventos, somos lançados entre várias conversas de uma mesma personagem que perdeu seu vibrador em um barco enquanto viajava com o marido. No vai e vem das conversas que alternam muito rapidamente entre diferentes espaços nunca totalmente claros, o resultado é uma colagem de cenas que, para mim, consegue aquilo que Julio Cortázar dizia ser objetivo de todos os contos: nocautear o leitor.
A presença de um bom elenco de personagens, em especial as mulheres que destaquei, torna-se um elemento ainda mais importante do livro, tendo em vista o recente crescimento do debate sobre se a literatura seria realmente capaz de colocar-nos no lugar do outro. Penso na quantidade de péssimos exemplos de livros, por vezes dos autores mais renomados, com personagens construídas a partir de estereótipos que validam os mais variados preconceitos. Diante desta selva, como diz a epígrafe de Paulo Henriques Britto, Formigas no paraíso parece um livro preocupado com as questões éticas implicadas no fazer literário, e as transforma em algo formalmente interessante, no fim das contas.
Se, por um lado, deixa evidente que a solução não pode ser a de ignorar o problema de escrever o outro, fingir que o potencial de livros para reproduzir noções preconceituosas e carregadas de violência não existe; por outro, tenta construir seu relicário, encontrar um caminho para a escrita.
O conto, neste sentido, me parece uma decisão muito acertada para o livro de estreia de Baldi. Algo da sensação que tive ao longo da leitura de Formigas no paraíso era parecido com aquilo que senti lendo o segundo livro do escritor gaúcho Tobias Carvalho, Visão noturna, publicado pela Todavia no fim de 2021. Isso ocorre, mais especificamente, na quebra de expectativa entre seu primeiro livro As coisas – um conjunto de 23 textos focados na vida, mas principalmente na experiência amorosa, de jovens gays, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2018 – e esse segundo, um conjunto de apenas quatro narrativas um tanto estranhas entre si, mas que têm em comum os sonhos como um elemento central. Não se trata de elogiar o primeiro por sua honestidade ou por sua atenção maravilhosa aos detalhes, nem o segundo por sua inventividade de cabo a rabo. Mas penso que nesse movimento de circular entre diferentes temas e distintas maneiras de abordá-los, é possível notar algo que é comum entre esses dois escritores mais ou menos da mesma idade que começaram a publicar livros no Brasil.
Dito tudo isso, acho que é importante mencionar que, se parte dos contos de Formigas no paraíso são muito bons, há também outros que passam a impressão de acabar rápido demais, que têm elementos interessantes, mas aos quais parece faltar algo que os faria memoráveis. Por vezes, esses contos aos quais me refiro passam a impressão de serem quase estudos do escritor para a encenação de algumas personagens ou, talvez, pedaços de histórias maiores aguardando serem escritas.
No entanto, creio que ao falar sobre um livro de estreia é justo olhar com mais atenção para os pontos mais altos. Pois, com eles, há também uma promessa do que pode vir por aí. Criticar o primeiro livro de alguém dizendo que o problema dele é ser rápido, reclamar das personagens que você desejaria saber mais sobre, implica em uma curiosidade com aquilo que o autor escreverá no futuro.