Susan Sontag inicia o ensaio Sob o signo de Saturno descrevendo uma fotografia de Walter Benjamin (sim, o teórico alemão). Ele sempre olhando para baixo, sempre de soslaio, parece desviar o foco, querer sair de cena. A descrição me lembra uma tela de Edward Hopper, aquela Nighthawks mesmo, a mais clichê, porque nela os personagens parecem querer sumir dali, inclusive (e sobretudo) o homem solitário de costas, em alguma medida, se arrumando para zarpar diante do casal que também aguarda algum desfecho menos improvável para uma noite qualquer. É a fotografia de Benjamin - sua pose, seu gesto - que toca Sontag para uma certa conexão holística com o autor de ensaios como A obra de arte na sua reprodutibilidade técnica e Teses sobre o conceito de História. “Vim ao mundo sob o signo de Saturno – a estrela da revolução mais baixa, o planeta de desvios e atrasos”, escreve ele em fragmento pinçado por ela, ao propor uma invocação astrológica para “ler” Benjamin.
Traduzida por Rubens Figueiredo, a nova edição de Sob o signo de Saturno, conjunto de ensaios que foi publicado pela primeira vez em 1980 na New York Review of Books, parece colar num certo zeitgeist contemporâneo, nos tempos duros e obtusos que parecem solicitar leituras argutas e holísticas do mundo. Os sete textos reunidos foram escritos por Susan Sontag entre 1972 e 1980 e incorporam um debate estético e político que se amalgama com o curso na política dos Estados Unidos, do pêndulo ora republicano de Richard Nixon ora democrata de Jimmy Carter à fantasmagoria autoritária e pop de Ronald Reagan. A ensaísta parece tentar responder a uma série de desconfianças sobre o caráter político da arte e da literatura, reivindicando, assim como fez em Contra a interpretação, um lugar da crítica cultural para além das imanências textuais, dos academicismos e dos chavões de um certo jornalismo cultural.
Esta premissa de Susan Sontag fica razoavelmente clara quando a autora olha para Walter Benjamin através, olhe só, de uma metáfora planetária, nas diretrizes do campo do esoterismo e do horóscopo. Este ponto de partida, em alguma medida, radicaliza a dessacralização de um cânone da escrita ensaística, na medida em que enxerga a melancolia de Benjamin como algo de intangibilidade, talvez e possivelmente só apreendida pela racionalidade dos astros. Pela lente de Sontag, estaria na busca pela cura da tristeza de Benjamin seu afã de tomar a rua, caminhar errático por uma Berlim preto e branca como sintoma de um certo desejo de encantamento do mundo, ou, em alguma medida, a figura do flanêur como signo de uma tentativa de conciliação astrológica.
Esta proposição de leitura parece conectada com o desencantamento do mundo atual, em que se vive uma certa euforia pós-pandêmica (ainda pandêmica), uma alegria endêmica talvez, quando, todos nós, saindo dos nossos quartos-salas-cômodos, tentamos, assim como Benjamin, curar dores espacializando o mundo com alguma dose de fantasia e magia. É neste sentido que, ao olhar para a tristeza “astrológica” de Benjamin, Sontag aponta para algo que está naquilo que reside os que creem nos horóscopos: uma precária noção de esperança.
Difícil não ler ensaios como Fascismo fascinante e O Hitler de Syberberg como incorporações de uma agenda retórica do final da década de 1970 e início dos anos 1980, em que as palavras fascismo e nazismo apareciam também numa pauta pública republicana nos Estados Unidos, que levaria Ronald Reagan à residência. Em Fascismo fascinante, Sontag se debruça sobre a produção da cineasta Leni Riefenstahl, diretora do icônico documentário O triunfo da vontade (1935) que serviu como base estética para sustentação de ideais nazistas. No entanto, ao invés de categorizar e acusar a cineasta como criadora de uma “obra fascista”, Susan Sontag se interessa por um certo fora de quadro de Riefenstahl, ao reconhecer que a adoração de Hitler pela cineasta advinha do seu rigor estético e plástico, da criação de metáforas bucólicas que foram fazendo a diretora ganhar prestígio junto ao regime nazista a ponto de rivalizar com o epicentro da propaganda nazista, ele mesmo, Joseph Goebbels, para quem a obra de Riefenstahl precisava ser mais “engajada” com os ideais do regime. A perspectiva de Sontag é a de suspeitar das classificações apressadas que vinculam estética e política e adentrar ao jogo das disputas internas, das tomadas de posição e dos horizontes estéticos que são criados nos conflitos de interesse entre conteúdo e expressão.
No ensaio O Hitler de Syberberg, ao debater as potencialidades simbolistas do cinema de Hans-Jürgen Syberberg, a ensaísta está, de alguma forma, tentando decifrar o fascínio pela imagem do líder nazista – assim como nós também perscrutamos imagens que nos levem a entender os líderes tecnopopulistas do mundo. Não à toa, temos a interpretação de Hitler, um filme da Alemanha (1977), de Syberberg, obra que, perceba, coloca Hitler como um filme, ou seja, uma projeção, uma imagem que conecta desejo e violência com redenção e desespero por um senso de justiça. O epicentro dos ensaios sobre Leni Riefenstahl e Hans-Jürgen Syberberg é, em alguma medida, acreditar que existe uma linha tênue e imprecisa entre arte e política, que não redime artistas de suas inculações político-partidárias, mas coloca uma camada de sentido no campo da linguagem, de seus mistérios e ambiguidades.
Três outros ensaios Sobre Paul Goodman, Conhecendo Artaud e Recordando Barthes apresentam a crítica literária com tintas mais acentuadas daquilo que vai consagrar a escrita de Sontag: uma espécie de interpretação pessoal, quase íntima, em tom confessional que se localiza na borda entre a fofoca, a exaltação desmesurada ou a ênfase sensual. “Eu jamais desejaria a Paul Goodman o tipo de estrelato na mídia concedido a McLuhan ou mesmo a Marcuse”, ironiza. Ao falar de Artaud, conecta o sofrimento e a dor existencial a uma violência cênica de sua linguagem, refletindo sobre a potência em ser antissocial. Sobre Roland Barthes (e com ele), escreve de forma pessoal, logo depois de saber da morte do autor de Fragmentos do discurso amoroso. Entre a ficção do encontro e a invenção da memória, Sontag ressignifica a morte e parece nos convidar a ver Barthes como quem decifra a icônica fotografia do jardim de inverno presente na Câmara clara.