Resenha SeletaEroticaMario Fabio Seixo Acervo Pernambuco

 

A sensualidade desbragada de Macunaíma, personagem do livro homônimo de Mário de Andrade, é uma das marcas mais salientes do nosso herói, um cartão de visitas desbocado e bandalho que diz muito da importância que o sexo tem na obra do escritor. A Seleta erótica de Mário de Andrade (Ubu Editora), organizada por Eliane Robert Moraes (foto), é uma prova disso: romances, contos, crônicas, cartas, poemas, teatro, nada escapa ao olhar atento da pesquisadora e intérprete sensível – o resultado é um delicioso panorama que, pela “variedade dos motivos sexuais” que apresenta, faz jus “a um escritor que acalentava o sonho de reunir a coisa em si e a coisa brasileira”.

A perspicácia da organizadora na seleção dos textos e no prefácio do livro revela uma forma de sabença – “essa graça essa sacanagem esse verbalismo popular”, no dizer de Manuel Bandeira – que, por alusões e metáforas, dá um sabor especial ao diálogo de Mário com seus personagens e consigo mesmo. A descida modernista “aos patamares do baixo corporal” confronta a “moral virtuosa” e os “bons costumes” mediante a “potência do ambíguo”, como no episódio da flor no puíto (na tradição indígena: ânus), meio de vencer ou contornar o interdito pela linguagem.

A solução literária nem sempre, contudo, representa uma solução existencial: “a desempacada textual não significava, em termos pessoais, uma superação dos apuros que o escritor enfrentou a vida toda por ser homossexual”, esclarece Eliane Robert, acrescentando que a ambiguidade “fala mais alto quando a homossexualidade assume o centro [da] obra”. O lirismo e as sugestões sutis do conto Frederico Paciência acentuam sua tensão erótica e dizem muito, na sua dicção autoficcional, do desejo e sua interdição, mais efusivamente enunciados em poemas de A costela do Grã Cão. As contradições do erotismo – a “divina impureza da minha alma”, diz Mário –, conferem aos textos do escritor um amplo leque de significação, que faz das vicissitudes pessoais uma questão (ou “coisa”) brasileira e vice-versa.

Daí a compulsão etnográfica e folclorista do Mário colecionador de parlendas populares nas quais as expressões lúbricas ou de duplo sentido são mais motivo de riso do que de reprimenda ou censura: “A mulé do patrão/ Foi tumá banho na levada,/ Quano ela se abaxô-se/ Pinicô-lhe o pêx’ispada”. Ou então recolhidas de “documentos escatófilos, em que a obscenidade está condicionada à atração pelos excretos”, nas palavras de Mário em Namoros com a medicina: “Texto, panela,/ Bolô, fedô,/ Arrebenta o c…/ De quem peidô”. Ou ainda: “Galinha quando canta qué botá,/ Moça bonita quando pinta qué casá,/ Gente velha quando peida qué cagá!”.

Por sua vez, o significado marioandradiano de sequestro – que Eliane Robert aproxima da noção freudiana de retorno do recalcado ao ler, entre outros textos, Amor e medo e O sequestro da Dona Ausente – acrescenta um dado relevante à ausência do/a amado/a. Conforme a autora, ao retratar “o desassossego precipitado pela ausência do objeto do desejo”, Mário vai além do que os poetas românticos puderam ir, “mais à vontade para abordar fenômenos e objetos associados à sexualidade em diversos domínios”, populares ou eruditos.

Os textos de Mário mais fortemente carregados de erotismo são aqueles em que sua pena persiste no gozo da palavra prestes a enunciá-lo como promessa de felicidade, a exemplo das anotações da viagem feita ao Norte e Nordeste do país: “adoro voluptuosamente a natureza, gozo demais porém, quando vou descrever, ela não me interessa mais. Tem qualquer coisa de sexual o meu prazer das vistas e não sei como dizer”. “Não sei como dizer” é uma forma de escrita natural, ou melhor, corporal, em que parece não existir mais separação, ou pontos de resistência, entre o desejo e sua satisfação, entre prazer e dor, corpo e palavra, como na descrição fortemente sexualizada da Guanabara: “Penetro as fendas dos morros,/ Desafogos de amor, jorros/ De sensualidades quentes,/ Ai, ares de Guanabara,/ Sou jogado em praias largas,/ Coxas satisfeitas feitas/ De ondas amargas”.

No posfácio do livro, Aline Novais de Almeida retoma principalmente a questão da escatologia de Mário, ao destacar Tempo da camisolinha dentre os Contos novos do autor. Na leitura minuciosa que faz deles, estuda a ficcionalização de dados biográficos pelo narrador, às voltas com “a emancipação do desejo, o enfrentamento familiar e religioso e a transgressão dos costumes morais”.

Tudo isso talvez possa se resumir ao verbo brincar, no sentido que lhe dá Macunaíma, herói sem nenhum caráter, ou seja, um só corpo autoerótico em comunhão e conflito com o todo – impossível “que nem a morte e os bons princípios”. Fazer esse corpo a corpo pulsar foi a tarefa a que Mário se deu por inteiro, como se costuma dizer. Fez dela um projeto de vida e escrita que a Seleta, que ora se publica, nos apresenta com paixão e arte. Uma bela maneira de comemorar os 100 anos da Semana de 1922.