Resenha Mario de Andrade junho.22Arte sobre foto de MICHELLE RIZZO 1869 1929 Domínio público via Wikimedia Commons

 

 

A partir da crítica e do confronto das noções de “identidade nacional”, “nacionalismo” e “brasilidade”, tendo em vista a obra e a atuação de Mário de Andrade (1893–1945), André Botelho (UFRJ) e Maurício Hoelz (UFRRJ) constroem, em O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado (Editora Vozes), uma cerrada reflexão sobre o intelectual modernista e o movimento cultural a que contribuiu decisivamente para dar forma. A música — a erudita e a popular, mas principalmente, a relação entre elas — é o eixo que conduz à requalificação da “cultura como espaço de conflito crucial pelas mudanças da sociedade”, afirmam os autores, desde já anunciando a originalidade da abordagem que propõem em relação às demais existentes sobre o assunto.

O interesse notável de Mário por esse processo musical de fala-escuta se dá pela valorização das culturas populares enquanto passo avançado de democratização. Compreendê-lo como “movimento cultural”, a que Mário dedicou toda sua vida, requer tomá-lo como campo “da tensão e do conflito em aberto”, cujas obras se definem pelo seu proposital “inacabamento”, exposto em textos, conferências e cartas, atenta e minuciosamente lidos por André e Maurício e que, da perspectiva sociológica inovadora da leitura apresentada, amplia significativamente seu raio de alcance.

A natureza sacrificial da conduta de Mário, ressaltam os autores, é a forma por excelência da mediação que “permite operar a passagem do individual para o social” e que, por meio da militância dos textos publicados em jornal, acentua o lugar de escuta do crítico, então compartilhado com o leitor. Movimento, movimentação — numa palavra, deslocamento —, que abre a contingência para o erro e a contradição como aprendizado e possibilidade de “diálogo criativo” entre o erudito e o popular, pois toda audição, diz Mário, “comporta necessariamente uma intenção educativa que é preciso cumprir”.

A proposição de Mário coloca em discussão, como possibilidade efetiva e devir, a “formação de movimento de ação coletiva e de vínculos intersubjetivos de pertencimento mais universalistas”, impasse que perspectivas eurocêntricas e estreitamente nacionalistas não dão conta de tratar efetivamente. No Ensaio sobre música brasileira, o autor de Macunaíma procura abrir caminho para “uma estética política de abrasileiramento do Brasil”, mais cosmopolita, ou melhor, “cosmopolítica”, no dizer de André e Maurício, voltada para “ressignificar o universal a partir das diferenças”. Em Macunaíma, a “representação ficcional não mimética”, realizada por plágio e empréstimos diversos, não se coloca como manifestação de nacionalismo cultural — “Deus me livre”, exclama Mário —, mas como se fosse uma “dialética sem síntese” do brasileiro, cópia em diferença do modelo europeizante por um inusitado rapsodo dos trópicos.

O “self modernista” de Mário e seu “pensamento musical” são heteróclitos e construídos, em grande parte, pelo diálogo que sua vasta correspondência obstinadamente leva adiante, uma sorte de tarefa intransferível ou missão a que o escritor se entrega com a consciência nítida do que está em jogo com seus missivistas: a “realização do modernismo como movimento cultural”. É por meio, entre outras, da correspondência com os mineiros, principalmente com Drummond, que Mário vai paulatinamente arregimentando adeptos e levando adiante seu trabalho de “abrasileiramento do Brasil”, como diz em carta ao então jovem poeta.

Para tanto, torna-se imprescindível uma “capilarização rizomática reiterada e progressiva” de “valores e práticas particulares”, que vão sendo socializados e passam a constituir uma nova perspectiva de observação e avaliação da cultura brasileira, ampla o suficiente para abranger o passado e o futuro, como reiteram André e Maurício. O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado encontra aí seu ponto alto, que o diferencia das demais reflexões até então realizadas sobre o assunto. Trata-se de ler as realizações de Mário por meio da dinâmica social de que fazem parte e vice-versa, num procedimento metodológico de mão dupla, muito distante das conclusões simplistas de que, muitas vezes, a ação intelectual modernista é vítima. “Eu desconfio do meu passado”, dirá Mário na célebre conferência de 1942 em que passa em revista as ações e realizações modernistas, como uma espécie de tema cujas variações, na verdade, sua vida e obra foi repetindo em diferença.

A questão da cultura brasileira encontra em Mário um de seus melhores formuladores, propiciando a abertura do campo para indagações e demandas ainda hoje de grande valia. O livro de André Botelho e Maurício Hoelz, além de suas muitas qualidades e de ser um elucidativo perfil biográfico do autor de Macunaíma, é a prova mais bem-sucedida da atualidade e premência da interlocução ininterrupta que Mário de Andrade nos deixou como herança viva — “carbúnculo e carinhosos diamantes”.