Resenha Guadalupe Mely Avila CC BY 4.0 via Wikimedia Commons

Existe uma cadência própria na escrita de Guadalupe Nettel, escritora mexicana bastante premiada nos últimos anos. Funciona quase como uma coleção de detalhes que são contados de forma muito profunda, de maneira que, talvez, se torne possível escavar as frases da narrativa, furar o romance e sentar-se em seu estopim primário, conhecer o mais absurdo pensamento de cada personagem ali apresentado. É assim que está posto o encontro do leitor com A filha única, lançamento da Editora Todavia (tradução de Silvia Massimini Felix), no qual Nettel propõe uma exposição sobre maternidade e suas reverberações na família contemporânea. 

Ao longo do romance, a personagem principal e narradora, Laura, está em contato com a relação mãe/bebê/filho por meio de pontos de sofrimento: Inés, filha de sua amiga Alina, nasceu com uma má formação cerebral; já Nicolás, filho de sua vizinha, é uma criança agressiva, protagonizando episódios de raiva e choro, o que torna a relação com Doris, sua mãe, exaustiva e cheia de momentos de tensão. Além disso, também temos contato com o relacionamento entre Laura e sua mãe. Surgem as incongruências que, muitas vezes, são características das nossas ligações maternas: “Para ser muito sincera, nunca me dei muito bem com a minha mãe. Embora nos amemos muito, nossos encontros são cheios de atritos e às vezes também de faíscas dolorosas. (...) As filhas costumam ver nos erros da mãe a origem de todos os seus problemas, e as mães tendem a considerar nossos defeitos como prova de um possível fracasso. (...) Estaria mentindo se dissesse que não preciso de minha mãe; quando ela não está, sinto-me sem rumo”.

Nesse sentido, é interessante a escolha de Nettel em deixar explícito que Laura demonstra uma espécie de posicionamento “contrário” à maternidade: “Durante anos, tentei convencer minhas amigas de que se reproduzir era um erro irreparável. Dizia-lhes que uma criança, por mais terna e doce que fosse em seus bons momentos, sempre representaria um limite à sua liberdade, um encargo econômico, sem falar no desgaste físico e emocional que traz consigo: nove meses de gravidez, outros seis ou mais de amamentação, frequentes noites sem dormir durante a infância e, então, uma angústia constante ao longo da adolescência” – um tipo de fala que se relaciona, por exemplo, com o ensaio Contra os filhos, da escritora chilena Lina Meruane, onde questões que envolvem a maternidade compulsória, o trabalho e a posição da mulher na sociedade capitalista/neoliberal são discutidas.

Porém, aqui, acredito, está a curva importante do romance de Nettel. Se iniciamos o livro com uma certa chateação diante de suas afirmações, de certo modo radicais e insistentes sobre o assunto, vemos, no decorrer da leitura, essa postura de Laura diluir-se. Aos poucos, ela vai demonstrando a ambiguidade que gira em torno da decisão de ter um filho e de pensar a maternidade como um caminho possível. Esse aprofundamento nas imprecisões da personagem fica mais evidente quando nos voltamos para a relação que Laura estabelece com o filho de sua vizinha, Nicolás. Os dois vão se tornando amigos, e a narradora desenvolve um afeto pela criança, tentando aumentar o seu bem-estar e confiança com saídas, lanches e conversas. 

Diante das dificuldades do garoto com a morte do pai e seus rompantes violentos, Doris entra em uma fase depressiva, permanecendo muito tempo na cama e, nesse momento, Laura e Nicolás tornam-se ainda mais próximos. Também no acompanhamento da gravidez de sua amiga Alina e, depois, na infância de Inés, cheia de adaptações devido ao seu diagnóstico, Laura encontra-se em uma posição na qual faz o que pode para apoiar e ajudar sua amiga, como também para demonstrar o seu amor pela bebê. Assim, a personagem recorre a um exercício constante de empatia, na qual o sujeito mantém-se próximo ao seu desejo, mas também olha para o outro com uma vontade de compreensão das suas histórias e escolhas. 

De certa maneira, o livro de Nettel nos coloca em contato com a ideia da “mãe suficientemente boa”, afirmação do psicanalista inglês Donald W. Winnicott (1896–1971) que distancia a maternidade da figura idealizada da mãe que está pronta para atender todas as necessidades do filho. Diante da presença desse filho, ela se anula, e coloca a criança sempre em primeiro lugar. Assim, as personagens que atravessam a sua narrativa estão em constante questionamento das faltas, vontades, desejos, funções e políticas que envolvem o ser-mãe, em uma sociedade ainda extremamente patriarcal e, muitas vezes, pouco atenta e convidativa às crianças e suas mães. Nos tempos em que bares proíbem a entrada de mães com os seus filhos e que temos um debate acirrado nas redes sociais sobre o que uma mãe deve ou não fazer com seu bebês, A filha única transforma-se também em um espaço que possibilita a chance de alterações, dúvidas e manejos sobre os percursos da maternidade, fazendo com que a literatura seja, mais uma vez, mediadora de mundos e propulsora de gente.