Resenha Richard Plácido Lucas Litrento

 

Em seu segundo livro de poemas, A festa do rouxinol (Loitxa Lab), Richard Plácido aprofunda e refina uma investigação estética iniciada em Entre ratos e outras máquinas orgânicas (2016), seu livro de estreia, embrenhando-se no absurdo, na violência e na escatologia, por meio de uma linguagem impiedosa, lancinante e fragmentada.

Suponho que deva saltar aos olhos do público leitor a imagem desse rouxinol que se anuncia no título da obra. O primeiro pensamento talvez seja uma associação (algo clichê, diga-se) entre pássaro, canto e poesia. E acredito que Richard esteja mesmo convocando (ou provocando) esse tipo de associação imediata ao emoldurar o rouxinol no título do seu livro. Este não é um pássaro qualquer: amiúde cantado por poetas inglesa, em versos de William Cowper, John Milton, William Wordsworth, e eternizado na Ode a um rouxinol, de John Keats (poema que concentra de forma exemplar as preocupações estéticas do romantismo inglês), pode-se dizer que, na poesia, o rouxinol está tão em casa quanto em seu hábitat. Richard Plácido, então, vincula sua obra a uma tradição. No entanto, basta um breve folhear de páginas para perceber que não há nada do caráter contemplativo da natureza ou de efusões sentimentais nesses versos amanhados sob as asas do rouxinol do poeta.

Então, aquele primeiro pensamento ante o título do livro precisa ser imediatamente colocado sob interrogação: o que esse pássaro faz aqui, em meio ao caos e aos conflitos da urbanidade, em meio às cenas da tragédia nossa de cada dia? Se é verdade que o melhor de toda a festa fica reservado para o final, então o desfecho do livro pode oferecer uma possível resposta. Em seus últimos versos, lê-se: “o rato é/ a festa de um ano/ da morte do rouxinol”. Diferente do rouxinol de Keats que, do alto de sua árvore, jamais entenderá “[a] febre, o desengano e a pena de viver/ Aqui, onde os mortais lamentam os mortais”,[nota 1] o rouxinol de Richard Plácido habita o mesmo espaço das espécies daninhas, e a sua visão aérea já não é mais etérea, sublime, é apenas mais uma perspectiva a partir da qual se pode ver o mundo se esfacelar. Ao proceder dessa maneira, ao final de seu livro, Plácido não mata apenas um pássaro, mas uma tradição poética inteira. A sua poesia é fundada nesse ato. Como consequência, seus poemas nos fazem conviver de muito perto com a morte.

Embora os parágrafos anteriores possam trair esta afirmação, o que me chama atenção no título desse livro é menos a ideia de rouxinol do que a de festa. Há vários tipos de festa, é fato. Mas aqui estou pensando na festa como espaço dos excessos, da embriaguez, da aglomeração indistinta de corpos, da sanha de corpos dispostos ao toque, ao choque. A festa do rouxinol não é recreação. Neste livro, o porre é concomitante ao trago. Logo, não se deve sorvê-lo de um só gole. Porque aqui as metáforas doem.

E não será de se admirar se os corações mais sensíveis tiverem que dar uma pausa para recuperar o fôlego durante a leitura. Richard parece seguir a lição de Manoel de Barros em Matéria de poesia: “Tudo aquilo que a nossa/ civilização rejeita, pisa e mija em cima,/ serve para poesia”. Pois é nos lugares mais ignóbeis, nas situações mais degradantes, que o eu lírico vai buscar as imagens para a sua lírica: ele espera, por exemplo, o último amigo, “que do esgoto/ colhe lembranças/ do amanhã”; e nos fala desse homem, cujos dentes podres se desprendem da boca: “o homem flutua até o banheiro/ escova com sangue a língua/ ensopa de mijo a marmita do almoço/ dá descarga”.

Em versos assim o público leitor há de encontrar ecos da carniça baudelairiana, dos corpos violados de Lautréamont, vendo-se, uma vez mais, compelidos a encarar o fato de que a poesia está não no que se diz, mas em como se diz. É por isso que, a meu ver, ecoa aqui também a argúcia de João Cabral de Melo Neto que, em sua Antiode (contra a poesia dita profunda), indo de encontro a uma acepção asséptica de poesia (algo semelhante ao que faz Plácido em seus poemas), dispara: “Poesia te escrevia:/ flor! conhecendo/ que és fezes”.

A festa do rouxinol é uma obra inevitavelmente desconcertante. Embora haja uma concretude nas imagens escolhidas pelo poeta, bem como nas situações descritas, a maioria dos poemas é atravessada por uma lógica onírica, que perturba, subverte e constantemente reinventa tudo aquilo que é filtrado pelos olhos do eu lírico. Está tudo aqui — a rua, a casa, o corpo, o expediente de trabalho e a marmita do almoço, mas, pelas lentes do poeta, o cotidiano se converte numa viagem delirante, oras absurda, oras cruel, como na série de poemas intitulada Rotina, que perpassa o volume.

Então, sim, suas metáforas doem. Mas, como a vida que brota da matéria morta, há também delicadezas nesta festa — no voo, na dança, no canto e na canção; como também há sutilezas — no arranjo poético, na concatenação dos versos, no roçar e trombar de palavras no interior dos versos. Suas metáforas doem. E, nos mostra o poeta, pode haver tanta beleza na dor.

NOTA

[nota 1] Em tradução de Augusto de Campos.