Uma dor perfeita, ao contrário do que diz o título, trata de uma dor horrível que, por isso mesmo, se torna impossível de ser narrada. Vem daí sua “perfeição”, como define o narrador deste novo romance de Ricardo Lísias: “Não posso descrever a dor. Ela é perfeita. Não tem portanto a menor relação com a linguagem. Nenhum relato dará conta de tanta exatidão”.
Eis uma definição do próprio real, como aquilo que resiste à representação, o que põe de saída o romance de Lísias dentro de certo esquadro: o da observação vis-à-vis da realidade, por mais horrível que ela possa ser, e por mais que resista ao próprio registro da expressão literária.
Mas a causa dessa dor é logo reconhecida, pelo menos no plano imediato do enredo, e suas consequências são narradas de maneira direta, bruta e às vezes delirante: a dor perfeita é um dos sintomas do novo coronavírus que produz no narrador a sensação de que os músculos das suas pernas estão sendo “carcomidos”. A experiência de tal sintoma é o assunto da primeira parte do livro, e a sensação chega a se tornar certeza, pois em meio a uma crise de delírio ele insiste que lhe tragam um canivete para que possa se desfazer das próprias pernas.
Dividido em quatro pequenos capítulos, o romance se concentra em um breve período em que Ricardo Lísias — personagem, narrador e autor deste livro — ficou internado na UTI de um hospital particular em São Paulo, após sentir “um leve mal-estar” por conta daquela “variante que não faz nada”. Embora o narrador não explique, a entrada no hospital aconteceu no fim de março de 2021, pois no livro ficamos sabendo que um navio acabava de atolar no Canal de Suez, no Egito — ou seja, a história se passa no período mais crítico da pandemia, quando as mortes decorrentes da doença chegaram ao número diário de 4 mil.
Mas o próprio narrador adianta: “A covid não me matou, como o leitor bem sabe desde que viu este romance na livraria”. Seja como for, o livro exala morte. Se Ricardo sobrevive, e nisso consiste a condição e a singularidade de sua narração, outros pacientes morrem no hospital à sua volta — uma senhora “arrogante e chata”, um homem “educado e impaciente”, entre outros.
Histórias de morte atravessam o livro. Uma moça de 28 anos, mãe de duas crianças, morre por falta de atendimento, motivo de vergonha para Ricardo, que se recupera da doença em um bom hospital. Um rapaz de vinte anos morre sem ter nenhuma comorbidade. Em clima de luto, o narrador passa a lembrar de pessoas de sua vida que morreram em anos anteriores, por outros motivos: a avó, o avô, o próprio pai — com quem o personagem, conforme se atesta dos seus nacos de memória, possui uma relação ambígua.
Tudo é narrado deste ponto de vista restrito: a cama de um hospital. Ricardo é não apenas um doente cuja vida passa a correr risco da noite para o dia, mas alguém que observa o mundo sem nem mesmo poder se mexer. Esta é, segundo ele, outra característica da perfeição: ela “mora na imobilidade”, e “a sensação de imobilidade é desesperadora”. Como um navio atolado no Canal de Suez. E como o país, naturalmente, pois este é um romance também sobre o Brasil. Tudo que se movimenta, por outro lado, se desgasta. Tal condição lembra Samuel Beckett e seus narradores imóveis.
Mesmo para um assunto tão extenuado, o autor consegue uma abordagem particular da pandemia. O tema não soa como mais do mesmo. E isso por alguns motivos. Por exemplo, pelos detalhes com que narra certos aspectos e efeitos da doença e do ambiente hospitalar, como a própria humilhação física pela qual o personagem vai passar em várias situações.
Ao ser internado, aliás, suas roupas e sua própria aliança de casamento são guardadas em um saco plástico, colocado por sua vez dentro de um cofre, como se fosse um ritual de passagem para a “vida nua”: pelado, desprotegido, fraco, resta ao personagem fazer a experiência de uma dor perfeita e observar o pequeno mundo à sua volta — além de se comunicar com poucos amigos e família por meio de um celular com a bateria fraca. Com o filho, aprende a jogar jogos infantis no celular, onde constroem casas.
O narrador fala dos médicos e enfermeiros em suas contradições e fragilidades, mas sem qualquer romantismo. Uma das enfermeiras de quem se aproxima, por exemplo, diz que redige trabalhos de conclusão de cursos universitários por encomenda, um desvio ético com o qual Ricardo chega a se divertir, em um dos poucos momentos engraçados do livro.
Para uma dor perfeita, Ricardo Lísias escreveu um romance imperfeito. No plano formal, as condições e dificuldades de escrever em tal situação (“Tenho receio de não falar coisa com coisa”) se refletem em uma linguagem obtusa, “doente”. De fato, há momentos em que o narrador não fala coisa com coisa, e nesse sentido o leitor não deve esperar um testemunho claro ou “naturalista” da experiência de internação.
Ou seja, é como se a doença do narrador se refletisse na própria linguagem. A “voz fraca” do personagem, suas crises de tosse, as perdas de memória, a vista embaçada, um certo ódio da situação (seu “tumulto íntimo”) e o medo da morte são formalizados em uma narrativa corajosa, envergonhada, desigual, comovente e defeituosa, repleta de lapsos e de brancos. Em vários momentos a frase se interrompe no meio de uma palavra, a pontuação deixa de ser usada, registros são modificados de modo repentino e no auge de um delírio a prosa se transforma em uma espécie de poema constrangido.
Mas, além da doença, o livro também conta a história de uma cura. O happy end, nesse sentido, parece ter uma função restauradora da própria linguagem do romance. O narrador recobre a saúde, os sentidos, a lucidez e, não por acaso, também a voz. E embora tenha um livro de Proust ao lado da cama, mais uma vez é em Beckett que ele está pensando. Como se dissesse que este é o livro que foi possível escrever e levasse essa condição às últimas consequências. Nascem daí todas as dificuldades e virtudes deste livro.