Jerome K Jerome resenha.abril.22

 

Nascido na Inglaterra em 1859, Jerome K. Jerome (foto) começa a publicar em 1885 – um relato memorialístico cômico sobre sua experiência como ator em uma trupe itinerante – e manterá uma carreira literária constante até sua morte, em 1927. Lemos sua obra (à distância de décadas) reparando como ele não estava completamente nem no século XIX, nem no século XX; ou ainda, nem ligado às correntes que fecham um século (naturalismo, simbolismo), nem àquelas que abrem o seguinte (futurismo, surrealismo). Devaneios ociosos de um desocupado, mistura heterogênea e divertida de relatos, é da primeira fase de sua produção, tendo sido publicado originalmente em 1886 – o ano em que Robert Louis Stevenson publica O médico e o monstro e Lev Tolstói a novela A morte de Ivan Ilitch. O livro sai no Brasil pela Carambaia, com tradução de Jayme da Costa Pinto.

Os capítulos são breves e o narrador é sempre muito direto, estabelecendo com o leitor uma sorte de camaradagem, instaurando nos relatos um ambiente de “conversa de bar”. Alguns segmentos do livro tem títulos autoexplicativos – “Do ócio”, “Do amor”, “Da timidez” –, formando o terreno para que o autor possa oferecer irônicas “lições de vida”; outros segmentos, aparentemente mais ligados a aspectos práticos da vida cotidiana – “Do apartamento mobiliado”, “Das roupas e dos modos” –, dão oportunidade ao autor de destilar seu olhar meticuloso e sua capacidade de síntese (“Um homem não consegue deixar de se revelar feroz e ousado com uma pluma no chapéu, uma adaga na cintura e uma camisa de alvas mangas bufantes”).

Os Devaneios de Jerome estão carregados de opiniões sobre as coisas mais diversas, como um carrossel de ideias. Sobre os animais domésticos e sua colonização dos lares: “Os gatos sem dúvida gostam mais de uma família que tem um tapete na cozinha do que uma que não tem; e, se há muita criança por perto, preferem passar o tempo livre no vizinho”. Sobre a posição do tímido na sociedade: “O tímido é considerado uma piada ambulante. Seu martírio é o esporte preferido na arena das salas de visita, onde é destrinchado e discutido com redobrado entusiasmo”. Sobre a relação entre as pernas e o estômago: “Se desejamos desfrutar plenamente do jantar, devemos dar uma caminhada de 50 quilômetros pelo campo depois do café da manhã e não chegar perto de comida até voltarmos”.

Existe um procedimento na escrita dos Devaneios que reconhecemos de um livro publicado cinco anos antes, em 1881, chamado Memórias póstumas de Brás Cubas. Assim como Machado de Assis, Jerome também chama continuamente a atenção do leitor, puxando essa entidade para o interior do texto com o uso de expressões como “meu caro leitor”, no esforço de transformar essa figura desconhecida em cúmplice na tarefa de devanear: “O leitor já se apaixonou, claro! Se ainda não aconteceu, é questão de tempo. O amor é como o sarampo, todos sofremos com ele um dia”. Ou ainda: “Quando alguma coisa dá errado às 10 da manhã, soltamos um palavrão e quebramos a mobília – ou melhor, o caro leitor solta um palavrão e quebra a mobília –; mas, se o infortúnio nos abate às 10 da noite, recorremos à poesia, ou sentamos na penumbra e pensamos como o mundo é oco de sentido”.

O narrador irônico e gozador de Jerome alcança, em alguns momentos, uma sorte de resistência diante das obrigações do trabalho e da sociedade. O “ocioso” é também perigoso, gerando desconforto em uma comunidade guiada pela eficiência e pela atividade. “É impossível desfrutar do ócio quando não estamos diante de uma pilha de trabalho. Não há graça em não fazer nada quando não há nada para fazer”, escreve ele. Ou seja, o ocioso é aquele que sabe que deveria estar fazendo alguma coisa, mas decide não fazer, deliberadamente. Essa postura ecoa de imediato naquela de Bartleby, o escrivão – o célebre personagem de Herman Melville –, cuja história foi publicada pouco antes, em 1853: também ele prefere não fazer, também ele alcança o riso pelo absurdo (e vice-versa, como também fará Beckett, cem anos depois, em Esperando Godot).

Em certo sentido, o “ocioso” de Jerome é um companheiro do Oblómov de Ivan Gontcharóv, “herói” do romance que leva seu nome, publicado em 1859. Jerome e Gontcharóv escrevem histórias sobre indivíduos que, se por um lado recusam o trabalho e a atividade, por outro abraçam um ofício paradoxal, aquele da escritura, que permite que a obra seja construída dentro de um universo imaginativo que recusa a criação de uma obra (o tipo de nó mental que só a literatura pode nos oferecer). Esses dois ociosos podem ser agrupados em uma comunidade na qual encontramos Akáki Akákievitch (O capote, de Gógol), Bouvard e Pécuchet (do romance homônimo de Flaubert) ou mesmo Simon Tanner (do romance Os irmãos Tanner, de Robert Walser), figuras atípicas que não se encaixam facilmente nas regras sociais. Os Devaneios de Jerome, portanto, contam duas histórias, uma visível, a outra invisível: a primeira nos faz rir; a segunda nos faz pensar.