Publicado neste mês pela coleção Círculo de Poemas (editoras Fósforo e Luna Parque), História(s) do cinema, de Jean-Luc Godard, revela ao público brasileiro uma das faces do diretor até agora desconhecidas no Brasil: a de poeta. Devemos ter em vista que o livro resulta de um experimento singular, não sendo fruto da incursão do diretor em uma outra arte, tampouco a publicação do roteiro de uma obra audiovisual.
Trata-se, sobretudo, de uma versão da série televisiva, que foi desenvolvida ao longo de 10 anos (1988-1998), e cujas primeiras elaborações datam dos anos 1970. Frequentemente encarada como a grande obra de Godard, História(s) do cinema foi o ponto de convergência de um percurso artístico e crítico de mais de três décadas. Esse longo período de maturação se cristalizou em uma série de oito episódios, totalizando quatro horas e meia de duração, nos quais o espectador é confrontado com o agenciamento de diversas camadas visuais, verbais e sonoras em que a história do cinema é atravessada pelas histórias da música, da literatura, das artes, da sociedade. A edição brasileira, traduzida por Zéfere, depura o tom grandioso da versão audiovisual e permite que nos voltemos para todas as formas que as História(s) já tomaram, sendo a poesia uma delas.
Diante das História(s) do cinema, podemos ser espectadores da série, bem como de uma versão para o cinema, Moments choisis des Histoire(s) du cinéma (2004), e, alargando um pouco mais o escopo, da espécie de epílogo que pode ser Imagem e palavra (2018). Podemos igualmente ser ouvintes de sua banda sonora, lançada pela ECM Records (em 1999), hoje acessível em tocadores digitais. Ser leitor, assim, é deparar-se com mais um contexto da obra, algo que não se limita a uma transposição entre mídias, pois mesmo com o livro, Godard buscou convocar modos distintos de leitura.
À época da conclusão da série, Godard elabora o livro, e com isso poderia realizar em parte seu sonho de juventude: publicar um romance pela editora Gallimard. Porém, seu projeto inicial não consistia em lançá-lo nem como romance, nem como poesia, e, sim, na coleção de História. Isso exprimia sua vontade de fazer a obra ser encarada no contexto das ciências humanas, o que culmina no debate entre o realizador e Eric Hobsbawm (1917-2012), promovido no programa televisivo Histoire parallèle. Assim, além de sugerir que pensemos o cinema como a arte do “breve século XX” – ou, enquanto arte “do século XIX/ mas que foi resolvida/ no século XX” – o trânsito entre audiovisual, história e poesia mostra como sua densidade formal permite que se desloque entre contextos.
O gesto de deslocamento é mais um testemunho de como essa obra pensa o século XX – século do célebre gesto duchampiano de levar um urinol ao contexto da arte –, e a publicação brasileira mostra como, mesmo enquanto poesia, há contextos latentes que emergem a cada nova configuração da obra. Isso se deve por uma diferença fundamental entre a edição original e a tradução: a ausência das imagens às quais se justapõem os versos, e que fazem os quatro volumes contarem com quase mil páginas. Em jogos de justaposição, de campo/contracampo entre frames e palavras, a versão original pode ser pensada enquanto poesia visual – algo que seria bastante fecundo no contexto da poesia brasileira. Seria pouco produtivo pensar, com o livro que aqui aporta, que a ausência das imagens é apenas um déficit. Isso pois, sem o que remeteria à poesia visual, o leitor é convidado a um outro modo de leitura, no qual se enfatiza o jogo de montagem de citações, o que evidencia uma outra tendência da poesia contemporânea: a da “escrita não-criativa”,[nota 1] da montagem verbal, procedimento que a escrita colheu, justamente, no cinema.
Todavia, se o procedimento citacional se apresenta tanto na versão audiovisual quanto na versão impressa francesa, a operação da montagem, no contexto da publicação brasileira, parece trazer consigo um grau a mais de disjunção: “como é que o cinema italiano/ pôde se tornar tão grande/ se nenhum deles/ de Rossellini a Visconti/ de Antonioni a Fellini/ gravava o som/ junto com as imagens/ uma só resposta/ a língua de Ovídio e Virgílio/ de Dante e de Leopardi/ tinha se entranhado/ nas imagens”.
Ao retrocedermos da tradução ao original e voltarmos ao início, à versão audiovisual, podemos compreender como, a cada novo contexto, a obra parece enfatizar a separação: vai da imagem em movimento na tela ao frame impresso no livro e culmina nos versos solitários sobre a página, no caso da edição brasileira. E, se Godard se perguntava como o cinema italiano pôde tornar-se tão grande com imagem e som sincronizados apenas na montagem, o leitor brasileiro poderá perguntar-se a qual imagem ausente se juntam as palavras que agora lê, poderá inverter a resposta de Godard, pensando que as imagens não faltam, que estão entranhadas nas palavras: verá emergir um dos recursos fundamentais da leitura literária, a imaginação. Quem imagina é um leitor possível, aquele que lê antes de assistir, e é completado por seu outro, que lê e tenta lembrar-se das imagens que viu, dos sons que ouviu.
Assim, a obra cria para si ao menos dois tipos de leitor, que não se dividem em uma cisão estanque, deslocam-se entre memória e imaginação: “se eu forço/ a lembrança/ de repente/ entendo/ o que está acontecendo/ eu estou imaginando/ isso mesmo/ não estou mais lembrando/ eu estou imaginando/ então, agora/ já é dia/ eu acho”.
NOTA
[nota 1] Termo cunhado por Kenneth Goldsmith em Uncreative writing: Managing language in the digital age (Columbia University Press, 2011).